O Velho do Mar
Parte I
Júlia da Piedade e Romão Laranjeiro conheceram-se numa tarde ensolarada de novembro, no ano de 1946. Naquele domingo, o cais do Ginjal estava cheio de gente, mas quis o destino que os seus olhares se cruzassem e se fixassem um no outro, criando imediatamente um elo de ligação de força inexplicável.
Júlia era filha de António da Piedade, viúvo há 10 anos e presidente da Academia Almadense, cargo a que ascendeu, tanto pelo seu gosto pela música, como pela sua fama de bom gestor e homem sério. Profissionalmente, António ocupava já uma posição importante na companhia dos telefones, tendo começado, muito jovem, como auxiliar de mecânico. Desde a morte da sua mulher que vivia para a filha, que, como ele dizia, era a única riqueza da sua vida. Planeava o seu futuro com minucia e carinho. Para além das aulas de música, que lhe proporcionava com grande convicção, entusiasmo e gosto, preparava agora a sua entrada para a faculdade de medicina. Júlia desde cedo que tinha revelado grande intuição musical e havia já três anos que tinha lições de piano com uma condessa russa, Dasha Saltykova, que tinha encontrado exílio em Almada desde 1917. Júlia era também uma brilhante estudante, revelando dotes especiais para as ciências. Embora muito bonita e naturalmente vistosa, Júlia era muito compenetrada e tímida.
Romão era filho de um casal já desaparecido, que tinha perdido a vida num acidente de contornos obscuros. Desde os sete anos que estava a ser criado por um tio paterno, Joaquim Laranjeiro, e por sua mulher, Inácia Laranjeiro. Joaquim era operário numa manufatura de cortiça do Ginjal e desde novo que andava metido no mundo clandestino dos sindicatos. Na vida pública era conhecido como um músico de excelência, tendo ascendido a maestro principal da Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, cargo que acumulava com o de Presidente do Conselho Fiscal. Corriam rumores de que era comunista. A sua mulher, Inácia, era doméstica e tinha-se dedicado com esmero à educação do sobrinho do seu marido, ainda que com alguma frieza no trato, talvez por ressabiamento de não ter podido ter filhos. Romão andava de aprendiz de torneiro mecânico, era alegre, bem parecido e muito extrovertido. Metia-se frequentemente em rixas, mas, segundo ele próprio dizia, fazia-o sempre para defender o bem. O que tinha de desconcentrado nos estudos gerais, que abandonou aos 15 anos, tinha de concentrado na música, a sua grande paixão. Por influência do tio, mas especialmente por mérito próprio, já era clarinetista fixo da Incrível, apesar de ter apenas 17 anos, progredindo a olhos vistos, cada semana que passava.
Naquela tarde, quando se conheceram, sentiram de imediato que estavam perdidamente apaixonados e que o namoro era inevitável. Mas quando souberam as origens de cada um, perceberam também que a vida não lhes iria ser fácil. É que havia na cidade uma rivalidade irracional entre as duas coletividades, a Academia e a Incrível. De tal forma que as famílias afetas a lados opostos se odiavam de morte. Tudo isto pelo simples facto de a Academia ter sido criada, cinquenta anos atrás, por dissidentes da Incrível. Nada havia a fazer, parecia, a não ser aprender a conviver com tal insanidade.
Começaram a namorar às escondidas. Aos domingos, após o almoço, apanhavam um cacilheiro para Lisboa e regressavam ao final da tarde. Davam grandes passeios, de mão dada, entre Santos-o-Velho e o Terreiro do Paço, trocando juras de amor e de fidelidade eterna. Num desses dias foram vistos em Lisboa por Dasha, mulher empedernida e ressabiada. Rapidamente, a nova voou da boca da professora Saltykova para os ouvidos de António que, de imediato, proibiu Júlia de voltar a ver Romão. Embora tivesse absoluta confiança na filha, passou, desde então, a controlar de forma impiedosa os passos de Júlia. Não admitia que a “riqueza da sua vida” fosse cortejada por um estouvado da Incrível, ainda por cima comunista. Joaquim Laranjeiro também não reagiu da melhor forma. Sobretudo, não queria problemas com as cúpulas da Academia. Teve uma conversa com o rapaz. Perguntou-lhe porque raio havia ele de se ter embeiçado pela sonsinha da Júlia da Piedade, com tantas raparigas bonitas que havia em Almada. Proibiu-o, com ameaças, de voltar a ver a moça. À pergunta revoltada de Romão “…mas porquê?”, apenas lhe conseguiu responder “porque o pai dela é o presidente da Academia”.
Desde esse dia que as vidas de Júlia e Romão se tornaram insuportáveis. Viam-se raramente, sempre à distância, e só comunicavam por carta, usando como entreposto uma ceguinha que mendigava na Rua Capitão Leitão, a quem exigiam segredo por troca de esmola reforçada.
Esmeraldo Feijó, conhecido como o “Velho do Mar”, era homem de poucas palavras. Dir-se-ia que falava ainda menos do que o indispensável. Em contrapartida, era um observador exímio e tinha uma audição com capacidades quase sobrenaturais. Constava que até ultrassons conseguia ouvir. Pescador desde os 10 anos, órfão de mãe desde a nascença, sabia, porém, ler e escrever com fluência, sendo frequentador assíduo da biblioteca da Incrível. Alguns domingos à tarde, depois de passar pela biblioteca, tinha por hábito ficar a jogar dominó com os velhos de Almada no salão de jogos da filarmónica. Entrava mudo, saía calado e quase sempre perdia. A alcunha “Velho do Mar” vinha-lhe das frequentes incursões que fazia, com o seu barco a remos de pouco menos de 4 metros, pelas águas que estavam para além da Cova do Vapor. Nunca casou. À noite, antes de adormecer, escrevia sempre algumas páginas do seu diário, que incluíam, sobretudo, os pensamentos que lhe ocorriam na solidão da pesca. Em jovem, atravessava uma vez por mês o rio no seu próprio barco, de Cacilhas ao Cais de Sodré, e convivia com mulheres de má vida. Em 1927 conheceu Verónica, que tinha uma filha de dois anos, Esmeralda, de pai desconhecido. Apaixonou-se pela mãe e pela filha e passou a visitá-las uma vez cada duas semanas. Saía sábado à tarde e regressava domingo à noite, passando a viajar de cacilheiro. Ao longo dos vinte anos seguintes manteve essa rotina e gastou todo o dinheiro que ganhou a ajudar as duas mulheres da sua vida. Nunca se casou com Verónica. Porém, quando a criança fez seis anos, perfilhou-a.
A paixão e a juventude ardiam nas almas e nos corpos de Júlia e Romão. A impossibilidade de se verem e as dificuldades em comunicarem levou-os ao desespero. Já que não os deixavam estar juntos, então morreriam juntos. Decidiram saltar borda fora do último cacilheiro para Lisboa, mesmo a meio do rio. Era novembro, estava muito frio e vento. Mesmo a meio do rio e já de noite, não resistiriam ao frio e à força da ondulação. Iriam ao fundo de mão dada. Combinaram o trágico evento para o sábado seguinte.
Nesse mesmo sábado, de madrugada, o Velho do Mar cogitava sobre o casamento de Esmeralda, que estava marcado para daí a um mês. Queria dar-lhe uma boa ajuda no início da vida. Verónica tinha morrido sifilítica havia seis meses. Já não a poderia ajudar. Decidiu fazer-se ao mar, embora o tempo não estivesse de feição. Teve o pressentimento de uma boa pescaria que, caso acontecesse, reverteria totalmente a favor de Esmeralda. Fez-se ao rio, um pouco antes da hora de almoço, levando mantimentos para se aguentar todo o dia. Passou horas na barra, junto ao Bugio, mas nem na rede nem no anzol teve sucesso. Ao entardecer, adormeceu por uns minutos e a corrente arrastou-o para o mar, no sentido nordeste. De repente, ao cair do lusco-fusco, acordou e avistou o dorso imponente de um espadarte. Tremeu de contentamento e de medo. Instintivamente, armou o guincho da popa do barco e lançou um anzol com isco à água. Se o peixe picasse e oferecesse resistência à captura, o seu pequeno barco seria arrastado para o fundo. Mesmo assim, não hesitou. Miraculosamente, o espadarte picou e não ofereceu grande luta. Quase que ajudou a ser içado para o barco, como se o seu desejo fosse descansar da luta contra as ondas. O peixe era enorme e ultrapassava, com o bico, o comprimento do barco. Esmeraldo teve de se ajeitar desconfortavelmente no banco, para poder remar. Iam no limite do peso aceitável para a frágil barcaça. A cada onda que batia, entrava um pouco de água no barco. Esmeraldo estava exausto e temeu seriamente não conseguir chegar a bom porto, mas foi buscar forças ao amor por Esmeralda e lá remou desesperadamente rumo ao cais. A pouco menos de uns quinhentos metros do destino, Esmeraldo viu os náufragos a debaterem-se com a ondulação, apesar do breu em que navegava. Aproximou-se, apontou a lanterna e percebeu de imediato que eram dois jovens. Lançou uma boia de salvação e gritou que se agarrassem. Júlia ainda teve forças para dizer que os deixasse em paz. Balbuciou que, se não os deixavam ficar juntos, por ele ser da Incrível e ela da Academia, preferiam morrer a viverem separados. Esmeraldo lembrou-se então da conversa que tinha ouvido no domingo anterior, enquanto jogava dominó na Incrível. Na sala contígua ao salão de jogos, dois dirigentes combinavam pormenores sobre a cerimónia que estava planeada para selar a decisão oficial de terminar as hostilidades entre as duas coletividades. Estava previsto um concerto das duas filarmónicas, na Rua Capitão Leitão, precedido de uma cerimónia de discursos, feitos pelos dirigentes de ambos os lados, onde seria anunciado o fim oficial da rivalidade e prometidas futuras e profícuas colaborações. Para ter mais impacto no povo de Almada, o segredo tinha sido bem guardado, mas Esmeraldo tinha conseguido ouvir a conversa graças ao silêncio do salão de jogos e à sua audição sobre-humana. Em cada hierarquia dirigente a informação tinha descido apenas ao nível dos maestros principais. Gritou-lhes, então:
- Subam a bordo, por alma dos que lá têm! Vai haver uma cerimónia de pazes das duas coletividades já no próximo domingo. Subam, por Deus!
Júlia, quase sem voz, respondeu:
- Não acredito, só está a dizer isso para nos convencer.
Esmeraldo tinha a certeza de que, a partir daquele momento, tudo teria de acontecer muito rapidamente. Raciocinou numa ínfima fração de segundo. A frágil embarcação não aguentaria com o peso de mais dois jovens adultos. Para que o salvamento corresse bem, teria de deitar o espadarte borda fora. Mas havia ainda que os convencer a subir a bordo. Recolheu, então, os remos sobre o barco e, gesticulando, gritou-lhes:
- Para vos provar que estou a dizer a verdade, vou deitar borda fora este espadarte que pesquei, que me daria sustento por seis meses, para arranjar espaço para vocês subirem.
E sem ouvir sequer a reação deles, lançou o peixe à água escura, que rapidamente desapareceu no breu das ondas. Júlia lançou uma mão à boia e puxou Romão para si. O salvamento ficou envolto num desconhecimento quase total. Para além de Esmeraldo, Romão e Júlia, apenas o casal Laranjeiro e o Sr. António da Piedade ficaram a saber da quase tragédia.
Nos dias seguintes, até ao casamento de Esmeralda, o Velho do Mar voltou sempre à faina pesqueira, de manhã à noite, num esforço titânico de recuperação do valor do espadarte perdido a favor das vidas de Romão e Júlia. A sorte e a melhoria do tempo ajudaram-no muito. Conseguiu uma maquia avultada que, junta com as economias de vinte anos, viria a ser uma preciosa ajuda a Esmeralda para o seu início de vida. Esmeralda casou no mesmo dia da cerimónia de reconciliação entre a Academia e a Incrível. O Velho do Mar comoveu-se profundamente, desejando ardentemente que a filha fosse feliz e viesse a ter uma vida digna. Acabada a cerimónia, regressou a casa, solitário, como sempre. Cruzou-se com um companheiro de dominó, numa rua escura, que lhe disse que a cerimónia de pazes tinha sido um grande sucesso. Esmeraldo pensou, por instantes, nos dois jovens que salvou no rio. Morreu uns meses depois, sem chegar a conhecer a sua neta, Vitória, que viria a nascer em 1950. Teve no seu funeral a filha, o genro e dois amigos da Incrível. Esmeralda herdou do pai, por fim, o barco e os vários cadernos onde estava escrito o seu diário.
(Continua na Parte II)