Tia Nena (Nené)

 

A tia “Nena” foi rebatizada tia “Nené” por alturas da revolução dos cravos. Não que o novo nome tivesse alguma coisa a ver com aquele período histórico. A mudança ocorreu porque tinha, recentemente, nascido a Alcinda, a nossa prima mais nova daquela geração, que, no seu ímpeto de debutante no linguajar, decidiu simplificar, igualando as duas sílabas.

 
Há, então, duas tias Madalenas. A tia Nena que lidou com a meninice dos sobrinhos mais velhos e a tia Nené dos sobrinhos mais novos, filhos do seu mano João, e dos sobrinhos netos. No meio terá ficado a Guidinha, que pertencerá a ambas. Não que elas sejam diferentes uma da outra. Apenas a idade as separa.
 
A tia Nena, então mana Madalena, licenciou-se em Matemática, na Universidade de Coimbra, no virar da década de quarenta para cinquenta, facto absolutamente notável para a época. Mas não menos admirável é que, logo de seguida, tirou a carta de condução e comprou um carro. A trabalhar como professora e dona da sua mobilidade, tornou-se completamente independente e emancipada numa altura em que as portuguesas da burguesia disputavam o estatuto de mulher ideal fazendo formações em puericultura e participando em concursos para revelação da melhor dona de casa da nação. Em jovem, participava ativamente nas Guias de Portugal, com quem, para além da fé católica, partilhava a comunhão com a natureza em assinaláveis atividades físicas. Chegou a escalar o Cântaro Magro, na Serra da Estrela, tarefa que, não sendo propriamente igual à subida do Monte Branco, revelava capacidades físicas e emocionais muito acima do comum.

 
A tia Nena nunca se casou nem teve filhos mas projetou todo o seu espírito maternal nos oito sobrinhos e até, talvez um pouco, nos seus três irmãos rapazes.
 
Desde sempre que me lembro dela como professora de matemática, numa escola da Covilhã. Nos períodos escolares residia por lá mas, sempre que as obrigações profissionais o permitiam, corria a refugiar-se no seu lar familiar, em Alpedrinha. Quando, por coincidência, eu lá estava também, a tia Nena ocupava-se de mim, incutindo me disciplina, regras de higiene e comportamento, regras de poupança e contenção e, acima de tudo, regras de conduta. Cantava-me cantilenas em francês. Levava-me à missa frequentemente e, por vezes, lavava-me a cabeça no lavatório da casa de banho. Lembro-me das suas mãos macias, mas firmes, a segurarem-me o pescoço, para não espalhar a água. Quando se proporcionava, levava-me a passear no seu FIAT 600 bege claro, de estofos encarnados. Eu sentava-me a meio, no banco de trás, a observar com muita atenção a dificuldade com que ela, por ser baixa, tinha no ângulo de visão com o para-brisas. Lá se desenvencilhava, contudo, manobrando com sofrível destreza aquela “máquina infernal” por entre calçadas apertadas e estradas de campo.
 
Um dia, desses que passávamos juntos com muita família em volta, eu disse para os meus pais que, no dia seguinte, faria um desenho de cópia de uma imagem de Cristo que por lá andava num calendário de uma casa comercial. A tia Nena ouviu-me inadvertidamente. Eu não dei conta. No dia seguinte, fui buscar os meus Caran d’Ache* (talvez presente de Natal), sentei-me à mesa de camilha da sala pequena e lá copiei aquele ecce homo. A tia Nena passou por tás de mim, olhou para o desenho, olhou-me nos olhos, e disse: Muito bem, João Pedro! Gosto das pessoas que prometem uma coisa e depois a cumprem. Eu era muito pequeno, nem teria dez anos, mas entendi aquilo como um dos maiores elogios que alguma vez me fizeram na vida.


 
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*”Caran d’Ache” é o afrancesamento da palavra russa “karandash”, que significa “lápis”. A famosa marca suíça (n. 1924) de materiais de desenho e pintura copiou a ideia de um caricaturista e desenhador (Emmanuel Poiré), nascido na Rússia, filho de pais franceses, que, já no século XIX, usava a expressão como pseudónimo.
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Lembro-me dela a passajar meias, com agulha e linha à cor, usando um ovo de madeira polida como apoio de tear. Nas tarefas de cozinha, entre outras, fazia bolos de bacalhau e ensinava-me a moldá-los com duas colheres de sopa, antes da fritura. Eu executava a missão com esmero, até ver mergulhar os bolinhos no azeite quente.

 
A tia Nena tinha sentido de humor mas ria-se sempre com doçura e contenção. Apreciava especialmente as piadas do seu mano João. Era também teimosa, obstinada e, por vezes, resmungona. Numa das tardes em que passajava uma meia preta de homem, a tia Nena ia resmungando que não cortavam as unhas dos pés, que por isso tinha tanto trabalho. O tio João olhou de relance e constatou que ela passajava a zona posterior da meia. Disse-lhe, então: Pois, mana, eu, de facto, não costumo cortar as unhas dos calcanhares!
 
Não me parecendo muito sociável, não se furtava ao contacto com as elites “aristocratas” de Alpedrinha, meio onde era muito respeitada. Notava-se, no entanto, não raras vezes, uma certa distância que ela impunha a alguns. É que a tia Nena detestava futilidades. Entre os mais humildes, era venerada.
 
No Natal, oferecia meias (ou pijamas) a todos, porque também detestava desperdícios e esbanjamentos. Para ela, os presentes tinham de ser úteis. A uma dada altura decidiu que os guardanapos de papel deveriam, caso não ficassem impróprios de sujos, passar de umas refeições para as outras. Para tal, institui a regra de lhes escrever os nomes de quem os usava, para os poder guardar para a próxima vez. Conseguiu convencer toda a gente a respeitar esta medida.


Nos anos sucessivos ao 25 de Abril, havia longas e acaloradas discussões políticas entre os irmãos, na casa de Alpedrinha. A tia Nena raramente se envolvia mas, das poucas vezes que se manifestava, deixava transparecer uma posição política bastante conservadora. Certo dia, a conversa resvalou para as dificuldades económicas que o país atravessava. A tia Nena, grande opositora da ostentação e do luxo, opinou que, por ela, cada pessoa só precisaria de ter duas peças de roupa de cada tipo. Duas calças, duas blusas, etc. Uma peça em uso e outra em processo de lavagem. Um dos sobrinhos mais velhos, não me lembro exatamente qual, respondeu-lhe jocosamente que, afinal, a tia Nena era uma perigosa maoista. Ela não levou a mal, retorquindo apenas um sorriso condescendente.
 
A tia Nena era uma fervorosa apologista do trabalho e da disciplina. Em setembro ou outubro de 1974, o então primeiro-ministro Vasco Gonçalves, numa reação política aos “movimentos contrarrevolucionários”, apelou à realização de uma jornada de trabalho nacional. Cada português deveria, apaixonadamente e sem esperar nada em troca, executar uma tarefa a favor do progresso do país. O dia foi anunciado para um domingo, seis de outubro. Embora a proposta viesse de um quadrante político que não era lá muito do seu agrado, a tia Nena acatou-a com grande entusiasmo. Fez um plano rigoroso de quem faria o quê. A mim, que era dos mais novos, calhou-me gadanhar as ervas selvagens que despontavam nas bermas das ruas que circundavam a casa. Até os primos Alves, Paula e João, que, incautamente apareceram de visita, andaram de ancinho em punho a extirpar as plantas rebeldes que desfeavam as calçadas de granito.
 
Nos períodos em que estava no exercício da sua profissão de professora, a tia Nena residia na Covilhã. Alojava-se na casa da Obra de Santa Zita, que dispunha de quartos em regime de hotelaria para casos semelhantes ao dela. Embora a casa fosse mais destinada a situações transitórias, a tia Nena adotou-a como permanente. Lembro-me de a lá ter ido visitar uma vez. O quarto tinha, para além do mobiliário estritamente indispensável, quatro paredes brancas e um crucifixo. O refeitório era de limpeza imaculada e igualmente despojado. Porém, estou certo de que ela se sentia lá muito bem. Nos períodos de férias viajava pouco, embora não dispensasse estadas de verão em estâncias termais. Que eu me lembre, viajou uma vez de avião à Terra Santa.

 
A tia Nena levou uma vida despojada e simples. À semelhança de Santa Zita de Lucca, do pouco que ganhou com o seu trabalho, quase tudo deu aos outros, reservando para si o mínimo necessário à manutenção da sua saúde mental e física. A tia Nena não era poupada para constituir um pé-de-meia. Era-o para poder dar mais aos que necessitavam, incluindo à própria família.
 
Uma das suas últimas teimosias foi a de insistir em conduzir o seu carro, sozinha, ao anoitecer, de Alpedrinha para a Covilhã. Naquela estrada nacional, já na altura com muito movimento, o perigo espreitava a cada cruzamento, sobretudo para uma condutora como ela, que, devido ao glaucoma de que padecia, sofria exageradamente com o encandeamento dos faróis dos carros que circulavam em sentido contrário. O pior aconteceu, colidindo quase frontalmente com outro automóvel. As consequências foram-lhe severas. Contava o tio João, que acorreu ao local e ainda a viu na ambulância antes de dar entrada nas urgências, que ela, apesar de ter o rosto desfigurado por um hematoma gigantesco, o reconheceu imediatamente e lhe disse: Ainda não foi desta que me levaram, João. Sobreviveu alguns meses mais, mas, infelizmente, já bastante debilitada.
 
Ao funeral compareceram pessoas que ninguém conhecia. Era gente que representava organizações de caridade que ela tinha ajudado, que lhe quis prestar uma última homenagem.


A tia Nena foi feliz rodeada pela família e ajudando, o mais que podia, quem precisava. Fê-lo sempre sem alardes, incógnita e sem esperar nada em troca, para além, talvez, de um pouco de paz interior.

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J.P. Amaral
Cacilhas, 9 de maio, 2022