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A ARCA DE FERNANDO PESSOA
Dentro, choravam de alegria
o miosótis e a beleza.
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CONTAGEM DECRESCENTE
No cume da montanha eu vi
a aresta do futuro
e a solidão
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OS BÚZIOS
Trouxeste, uma a uma, todas as canções,
dispuseste cada nota musical como um edifício,
simbólica arquitectura.
A substância da harmonia é essa – rigor e sequência;
(quebraram-se os búzios).
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Trazes nas mãos aquelas flores anis
que o tempo consumiu numa crueldade pura,
trazes nas mãos essa espuma e essa lágrima
que a melancolia verteu.
É impossível saberes se o vazio é feito da tua alma,
ninguém no-lo dirá.
Já não há espaço para dançarem as borboletas.
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Eram o aço e o vidro esparsos pelos céus.
Tenho fúrias como aquelas lâminas o têm.
Não sei que fogos expelem as máquinas de além,
olho-me a cada espelho e não sou eu.
Quebram-se os ferros e todas as facas.
Os motores roncam cada vez mais, como feras furiosas.
Não tenho nada na minha mente, só a desolação
de não ser a fábrica da fantasia.
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Já não há espaço, na jarra, para as peónias.
Gostava de ter mais espaço na jarra
do que felicidade a encher a vida,
porque ter espaço na jarra
é dar sinal de que gosto de ti;
ao passo que estar feliz
é nada mais que cumprir o desígnio
da mecânica de tudo.
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Destruí, com minhas mãos, faunas e esporas.
Contra mim cavalgaram reis pagãos.
Não sei que notas musicais na minha vida
desmaiavam
silenciosas e neutras;
Invoquei, tenebroso, todos os aços
(a meus pés se desfizeram as armas proveitosas)
O trabalho infantil ainda é uma verdade.
Miríade de bocas sanguinárias abertas.
Perversas esquadrias de ferro nas orelhas -
não tenho fome de nada, a não ser de tudo.
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RADICAL
Não há mal nenhum em seres radical.
Se queres ser radical, sê, pois é a única maneira de te notarem.
É sendo radical que a tua personalidade se exibirá ferozmente, como um fogo-fátuo;
o radicalismo é a filosofia mais prática da vida,
porquanto revela, sobretudo, duas coisas: utilidade e destreza.
O radicalismo, por se encontrar numa extremidade, é um insecto letífero e dramático.
Ser moderado,
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Em cada minúsculo grão de vazio procura
teus sonhos e marcas,
busca cada minguada estrela
perdida no oásis do coração.
Simplicidade e neve – eis tudo.
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Há uma grande tristeza
em nossa vida, pois que
o fluxo do oiro é
perdição do tempo.
Terra do branco, vem
em fumos leves que
o oráculo teceu, suave,
na escuridão da calma.
Trago a chave mestra
de todas as tuas portas;
cumpre o teu destino,
os arquipélagos estão longe.
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Trouxemos numa barca todas as flores
que havia além.
Não sabemos nunca que perfeição
caeirística as ensombra.
Elas, no colo, transformam-se
em sapos cor de cinza,
e a limpidez lavou as fragas
da nossa dor.
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Ergui, para ti, fantásticos castelos
feitos de loureiros.
Obra da Lua em chama densa...
Derreteram as sonatas da amargura.
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A BATALHA
Naquele campo limpo, salpicado de centáureas,
dispunham-se os canhões e as lanças com precisão matemática
e estratégica.
Os animais recolheram-se pressurosamente em suas tocas,
o mundo cobriu-se de uma treva que parecia feita de grafite,
o sol era uma mancha parda no horizonte.
Os homens bebiam água por bilhas – eles sabiam que iam morrer, isso lia-se-lhes
nos olhos alucinados.
Os deuses não tinham dado seus mantimentos,
pois que até uma música mozartiana varria cada uma das folhas do chão.
Do outro lado estão humanos, iguais a eles;
mas foi a cólera de quem manda, de quem está «lá em cima»,
que ordenou, tacitamente, que os odiassem.
Nem sabem bem porquê! Mas ordens são ordens!
Os cordeiros tenros são mais desobedientes do que nós -
era importante que fôssemos também mais desobedientes, ou melhor,
que obedecêssemos, pelo menos, só à nossa consciência,
e não a eles.
A luta é mais do que sangue e ossos pelo chão;
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Há um princípio sagrado em cada um de nós,
como, quase invisível, uma partícula de diamante -
não sei como explicar, mas tentarei:
A finura do destino, cruel e fero destino humano,
com suas formas de lianas selváticas (de que floresta são colhidas?),
sons de basalto e caveiras de javalis
na perdição da desumanidade.
Não temas mais do que o medo que assume a forma demoníaca
de um naco de carne podre que se come ao pôr-do-sol.
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Na fria agudeza dos espaços,
morte;
e no desvão da serpente e da raiva,
tirania.
Não sei que me fizeste das sensações
vitais;
há sempre um caminho para sair
do caos.
Vem ver como abundam as flores
marinhas.
O amor está guardado num caixa
vazia.
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Tenho tanto frio no vão da imparcialidade,
(descem-me sílabas de mogno pelos braços utópicos),
curiosas ostras abrigam meus gritos
dispersos pelo mundo.
Há um qualquer segredo que me dizes em língua castelhana
(silêncio, eu não entendo a linguagem dos deuses,
nem seus gestos, no bosque, tão finos, frágeis!)
Entra no meu mundo (cuidado, ele é de seda)
e vê como diante de mim
os fantasmas beijam minha alma.
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EPITÁFIO PARA UM SOLDADO MORTO EM CAMPO DE BATALHA COM AVES DE SANGUE
Fui feito
de fios de sol
e risos
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Os lampiões derramaram sua luz
nas feridas da noite.
Água de lua, os meus lábios feridos na calidez
do desafio e da desesperança.
Farinha húmida da nossa aparição.
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Quebrou-se assim, como lâmina, a árvore da vida;
despi-me de todos os meus segredos, e os pinheiros
riram da minha desfaçatez. Um dia veremos como,
prudente, o cavalo trotará sobre as navalhas.
Não tenho mais com que te contentar, não tenho,
mas somente um canto de plenitude sem nada,
um olhar singular de oráculo ou bruxa ou sibila,
não tenho nada a dar-te, não tenho mesmo nada.
Estou tão perto dos caminhos de areia, todavia;
estou com os meus perdigueiros, que ladram, acercando
a caça, cada vez mais desunida e fantástica, do ouro.
Sinto (frio) cada fibra escutar tua canção latente.
Não tenho mais nada a dizer, mais nada, pára!
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Invoca, dentro de ti, um deus de cada noite;
símbolos de morte rodeiam meu batel de fogo,
não há, nestes momentos, raiva ou pranto.
Um gigante emerge da raiz em que me deito;
lutei durante infinitos dias contra o seu semblante tosco;
houve fúrias e sangue em cada passo.
85
Quase sempre o insecto de luz sobrevoou meu pensamento e sonhos.
*
Deixei minha pegada no caminho, e um vento roxo sopra para as bandas do abismo.
*
Coberto de penugem feita de linho, o meu pássaro deu um grito e estremeceu.
*
Grão de laranja que me verte sua depressão no âmago da alma.
*
Sei que há qualquer coisa de estranho no corpo inerte da filologia.
*
Intactos, devorei o sol e a solenidade que jaziam nas fibras da harmonia.
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Mais não sei como fugir do meu perpétuo
medo, sinopse de um flagelo.
Integral, multicolor, gira minha sombra
no teatro da angústia.
Lívidos líquenes. Opiniões animais.
Altiva forma da ignorância.
Dirijamo-nos a Deus de mãos vazias.
87
Ouves os passos das nuvens?
Eles têm cada um sua vaidade e sua forma.
Atravessas o pomar tocando na erva -
a ausência te segue.
88
Obscuridade dúctil – partiste no comboio da meia-noite.
Foste a estrela e o fantasma.
Calai-vos, laringes de fogo.
89
Não tenho mais com que me entreter nas orelhas dos hipopótamos;
eles fabricaram todos os astros do céu vermelho, que o Diabo comanda de Além,
e não sabem como perverter o éter dos espaços.
Silêncio, não há como engolir uma equação,
há só como sentir a pureza do branco e dos cabelos das oliveiras.
No cais da morte minha sombra jaz à espera.
Um barco de ébano se aproxima, o barqueiro é um esqueleto,
e traz uma coroa de rubis no topo do crânio.
Fiquei sobriamente esperando, enquanto o rio sangrava.
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Letífera película
que a aranha
urdiu
nos olhos de ónix
do leopardo.
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Tudo no mundo me enfastia.
Não sei porquê, mas no fundo sei...
Se soubessem tanto como eu do que se passa além da máscara de tudo
não andariam tão joviais, e tão ufanos.
Bestas sagradas na aresta do destino.
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INTRODUÇÃO À BIBLIOTECA JURÍDICA DE HUGO GROTIUS
Não havia um só sorriso na boca dos meteoros.
Entrei, gelado, naquele ambiente solene e escuramente silencioso.
Precisão e tempo, combate e força.
Uma linha recta em cada página.
Vi, reflectidos nos espelhos de precisa esquadria, os olhos azuis de Hugo.
Uma cortina ondulava no castelo do Direito Natural.
Soteriologia e graça antiga,
Lombadas de oiro onde está contido
todo o húmus da radicalidade.
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Ouve, que canção antiga as nuvens entoam...
Os sonhos despedaçam-se e tombam na terra gelada,
é o início do dia -
Esse dia puro em que Sansão enlaçou os orvalhos e os linhos,
esse dia inicial de nítido desenho e sfumato e sombra,
em que o verde da floresta era mais denso que o costume,
e a Morte, embuçada e oculta, errava por entre os choupos.
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SUICIDE
I took some time – the Raven's cry
is white, and deathly deep...
I wonder if I walk through hell,
whose floor is made
of ash and brimstone...
Silence, my dearest ocean
(where my dreams are shattered) -
Don't keep my mistery in Thought,
be wonderful and kind,
I widely whisper in the wind,
which is the mouse's messenger.
A few yellow infinitive over my skull.
Enought, beasts and furies.
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TARDE DE CHUVA
Ela estava a estudar História da Arte; detinha-se
numa pintura lombarda: Cerano, Morazzone e Procaccini...
O cão e o cavalo.
A sombra forma um eixo de água negra
que o manto vermelho de Rufina
quebra visualmente.
Três mãos. O infinito em seus crânios de lume.
Clarões divinos que o céu
desorienta.
A Axiologia no palco de madeira do desespero.
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Tens um coração venenoso, como uma mandrágora,
e nasceste num país inominado, e antigo.
Folheei milhares de páginas
de livros de Mitologia;
não encontrei tuas origens.
Acaso os quatro elementos são
o ferro, o ouro, o enxofre e o hélio?
Perdi todas as jogadas,
abandonei todas as buscas.
O abstracto não se procura,
mas sim o concreto e simples
que a realidade concatena.
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Busca o preciso e liso,
não te percas num céu de nuvens que choram.
O caminho que o nevoeiro vai revelando
é o que ao fundo nos dá ainda mais fundo,
pois não há um caminho para o fim, até à Porta da Fantasia;
não haver fim é o começo de tudo a todo o momento.
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Vai e vem -
não tem o mapa,
mas guia-se
por astros e sussurros.
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Aquele que grita é o imperador.
Aquele que brada e uiva,
que aguça suas garras e
rasga seu manto de púrpura.
Gira um vento espesso ao redor dos cabelos da floresta;
milhões de átomos que se agitam numa fúria inconstante;
as ondas do oceano formando um dorso horrendo;
a cidade, destroçada, é um cenário terrífico e antigo.
Milhares de crianças (espectros inválidos) deambulam,
labaredas roxas invadem os palácios, ah, e os incensos
da igreja, perturbantes, densos, já não se podem queimar;
o tempo já não tem definição exacta, é um fuso invisível.
No centro do lago manso incendiou-se o poema.
A Cidade dos Imortais, onde florescem mil cores,
acaba de a devorar o lume infinito das bocas
imundas dos faraós vermelhos.
100
ESCATOLOGIA PARA «O REI DOS ELFOS»
Em meio do caminho a névoa horrenda
a forma escondia de um furor e treva,
cuja túnica escarlate no colo leva
exortação, grito, promessa e lenda.
Que nos olhos do cavalo um fogo acenda
a velocidade, o desejo e a primeva;
em redor o chamam, em redor já neva
no coração da criança reverenda.
Ei-la, nos pátios da morte, aniquilada.
Seu sangue corre pelos mãos do pai.
E sugando, fluvialmente, sua boca vai
uma história orando, fantástica e gelada.