Largo do Carmo, 25 de Abril de 1974, foto de Alfredo Cunha

Les Chevaliers de Pas

 

A minha vivência do 25 de Abri de 1974, associada à riquíssima trama de tudo o que se passou nessa longa jornada, leva-me a ter vontade de um dia vir a escrever uma obra de ficção baseada no tema. Se a tal me atrever, este texto será o seu prefácio.

Portugal viveu os primeiros 74 anos do século XX sob três regimes políticos totalmente incapazes de desenvolver o país em consonância com os ventos europeus e mundiais. No virar do século anterior, até 1910, o regime de Monarquia constitucional, fortemente fragilizado pelo ultimato inglês de 1890, revelou total alheamento das realidades do mundo e do seu povo, não tendo, por isso, resistido a uma revolução republicana sangrenta, que se prenunciou com um regicídio bárbaro, no dia primeiro de fevereiro de 1908, e culminou com a tomada do poder pelos republicanos em 5 de outubro de 1910.

 

Oliveira Marques, na sua obra Breve História de Portugal, Editorial Presença, 4ª edição, refere que “Ser republicano, por 1890, 1900 ou 1910, queria dizer ser contra a Monarquia, contra a Igreja e os Jesuítas, contra a corrupção política e os monárquicos, contra os grupos oligárquicos. Mas a favor de quê? As respostas mostravam-se vagas e variadas.” Esta inconsistência política não augurava nada de bom para o novo regime. De facto, de 1910 a 1926, a primeira República, sustentada em diversas fações políticas, não conseguiu estabilizar nem pacificar o país, tendo-se assistido nesse período a uma sucessão de golpes militares, violência, perseguições e crimes. Após o assassinato de Sidónio Pais (4º presidente da primeira República, que limitou alguns direitos constitucionais em vigor desde 1911), em finais de 1918, um período de vazio de poder deu origem a uma breve guerra civil e ao recrudescimento dos movimentos de restauração da Monarquia. Pacificado o país e derrotados de novo os monárquicos, a realização de eleições em 1922 deu início a um período de relativa estabilidade. No entanto aquele modelo político estaria já ferido de morte. Os militares, que nunca perdoaram o facto do poder político os ter obrigado a combater numa guerra que não queriam (primeira guerra mundial), desculpando-se com o caos em que o país vivia tomaram o poder em 28 de maio de 1926, dando origem a uma das mais longas ditaduras do mundo ocidental.

 
A Ditadura Nacional, mais tarde Estado Novo, durou até ao seu derrube pela força, que ocorreu em 25 de Abril de 1974. Sistema totalitário, autocrático e antiparlamentar, o Estado Novo, de inspiração fascista, matou, torturou, perseguiu e prendeu sem culpa formada milhares de pessoas cujo único delito era serem contra o regime.

 

As condições miseráveis de vida dos portugueses dessa época levaram a que ocorresse um surto de emigração sem precedentes ao longo das décadas de 50, 60 e 70, tendo a França como principal destino. Muitos desses emigrantes tiveram de passar ilegalmente os Pirinéus, a pé, ou por razões políticas, ou para escapar à guerra colonial (1961-1974), acabando alguns por ser mortos ou presos por guardas fronteiriços.


O Estado Novo consolidava e defendia o seu poder apoiando-se, entre muitos outros pilares, na Igreja, nos militares e forças para-militarizadas, na sinistra polícia política (PIDE), num sistema judicial viciado e sem coluna vertebral, na comissão de censura, e ainda no fomentar da iliteracia. Em 1974, 1 em cada 4 portugueses acima dos 14 anos era analfabeto (25%) e o número de alunos a frequentar o ensino secundário era 10 vezes inferior ao número homólogo de 2011. Para chegar a estes valores de analfabetismo no Reino Unido seria preciso recuar a 1870!

 
Com o eclodir da guerra colonial em Angola (1961), que se estenderia rapidamente a Moçambique e à Guiné-Bissau, o Estado Novo encetou um esforço de guerra hercúleo e insano, enviando tropas mal preparadas e mal equipadas para territórios longínquos, hostis e totalmente diferentes, onde a ardilosa guerrilha dos independentistas autóctones os esperava. Foi neste ambiente de profundo descontentamento dos combatentes portugueses que faziam a campanha das colónias que, mais uma vez, agora com o objetivo de repor a democracia e não de coartá-la (como aconteceu em 1926), os militares conspiraram e planearam um golpe de estado, submetido ao programa político subsequente conhecido como o programa dos 3 D’s: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver. Maioritariamente composto por experientes capitães de carreira, apoiado por alguns oficiais milicianos, o movimento dos capitães de abril obteve apoios em todos os ramos das forças armadas, onde recrutou cirurgicamente os elementos mais politizados e descontentes.

 
Com tudo planeado e a postos, foi dada a contra-senha de arranque da ação às 00h25m do dia 25 de abril de 1974, através da passagem cúmplice, na Rádio Renascença, da canção “Grândola Vila Morena” de Zeca Afonso. De diversas unidades militares de todo país partiram, então, os contingentes revoltosos, cada um deles com uma missão pré-programada. Foram assim ocupados e tomados diversos pontos nevrálgicos em Lisboa e no Porto, enquanto a coluna de maior responsabilidade viajava entre Santarém e a capital (cerca de 80Km) sob o comando do capitão Salgueiro Maia, numa caravana ruidosa e poluente de carros logísticos e de combate da Escola Prática de Cavalaria (EPC), com o objetivo de obter a rendição do governo, no Terreiro do Paço.  Era constituída por duzentos e quarenta rapazes na casa dos vinte anos, a maioria deles instruendos sem nenhuma experiência de combate, transportados em 25 viaturas. Eram elas três Panhards EBR (tanques ligeiros com canhão de 75mm), três FOX AML (autometralhadoras ligeiras de 12,7mm), Uma Panhard AML (autometralhadora ligeira com morteiro de 60mm), dois Chaimites (viaturas blindadas de transporte de tropas), um Panhard ETT (viatura blindada de transporte de tropas), 12 camiões de transporte de tropas, duas ambulâncias e um jeep de comando. À cabeça seguiria uma viatura civil ocupada por três oficiais milicianos que indicaria os caminhos à coluna.  Todo aquele material de guerra, maioritariamente de fabrico francês (concebido para a guerra da Argélia), estava obsoleto, danificado e representava baixo poder de fogo. Munições para os canhões dos Panhards EBR, por exemplo, iam apenas 15 na bagagem. Esperavam-nos em Lisboa uma oposição das forças leais ao governo apoiada em viaturas semelhantes, mas em muito maior número, reforçadas por tanques M47 (tanques pesados, os carros de combate de maior poder de fogo do exército português da altura, equipados com canhão de 90mm) e pela fragata Gago Coutinho (F-743) estacionada no Tejo em posição de defesa/ataque do Terreiro do Paço.

 

Salgueiro Maia sabia que tinha pouco poder de fogo e poucas munições e que, como consequência, caso tivesse de entrar em conflito armado, claudicaria em pouco tempo. Esperava-se uma posição neutral por parte da Força Aérea, mas do lado da Armada nada se sabia. Por todas estas razões a coluna do capitão Maia viria a ser protagonista dos momentos mais épicos, heroicos e poéticos do 25 de abril. Na viagem de Santarém ao Terreiro do Paço em Lisboa, e mais tarde ao largo do Carmo, onde finalmente obtiveram a rendição do presidente do Conselho de Ministros, os rapazes do Maia protagonizaram diversos episódios que puseram à prova a sua grande coragem e sangue frio e que contribuíram para as auras de heroísmo e epicidade de que este dia merecidamente se coroou. As delicadas negociações com os fiéis ao governo (homens cara a cara, canhões contra canhões), as rendições sem um único tiro disparado, a insubordinação dos tripulantes dos tanques fiéis ao regime, o aumentar do poder de fogo com a passagem para o lado dos revoltosos de tanques M47 e outros blindados, o lidar com a incerteza do partido que tomaria a fragata que evoluía no Tejo, a entrada nos gabinetes ministeriais do Terreiro do Paço e a constatação de que o governo já lá não estava, a incrível viagem de parte da coluna de blindados do Terreiro do Paço ao largo do Carmo (quartel da GNR) sempre acompanhada pela multidão, o megafone de Salgueiro Maia, a população apinhada no largo a assistir à rendição do governo, os disparos intimidatórios de metralhadora sobre a fachada do quartel da GNR (onde o Presidente do Conselho estava refugiado), e finalmente a entrada de rompante do Capitão dentro do quartel, para parlamentar com Marcelo Caetano e obter a sua rendição, estão entre alguns dos episódios mais marcantes daquele dia. A propósito da entrada no quartel do Carmo, Salgueiro Maia viria a revelar, em entrevista dada anos mais tarde, que o único homem que mantinha a dignidade no seio dos sitiados era o Presidente. Se juntarmos a tudo isto o facto de no ar terem nascido cravos vermelhos aos milhares, que de seguida voaram para as lapelas dos civis e para os canos das G3 dos militares, o resultado é sem dúvida um dia glorioso na história de Portugal.


 
Sem nenhum rigor histórico, evidentemente, eu diria que os fatores principais que contribuíram para o sucesso dos revoltosos naquele dia foram os seguintes:

 

  1. A determinação do capitão Salgueiro Maia e dos seus coadjuvantes associada à coragem, sangue frio e temeridade dos seus 240 homens.

 

Diversos foram os episódios em que tais fatores foram determinantes. O mais significativo, no entanto, talvez tenha sido o confronto na Rua do Arsenal entre as 10h00 e as 10h45. Dois tanques M47 fiéis ao governo enfrentam três blindados da EPC, com as peças de artilharia reciprocamente apontadas, enquanto o Capitão Maia inicia uma investida parlamentar com o Brigadeiro Junqueira dos Reis para tentar obter, pelo menos, a neutralidade. Salgueiro Maia, ainda em Santarém, tinha dado instruções rigorosíssimas para só haver fogo no caso de ele o ordenar expressa e muito explicitamente. Começa então a andar em direção aos M47 de braços abertos, pedindo conversações e informando que seguia desarmado. A verdade é que alguns subalternos seus sabiam que ele levava uma granada no bolso das calças. Tinha-lhes dito, momentos antes, que houvesse o que houvesse não se renderia e que caso aquilo desse para o torto havia de ir tudo pelos ares. O Brigadeiro Junqueira dos Reis talvez tenha acreditado que o Maia ia desarmado, mas nem quis saber e deu ordem de disparo, aos berros, ao seu Cabo apontador José Alves Costa. Após a primeira recusa insistiu, ameaçando-o de morte com um tiro na cabeça. O Cabo baixou-se, entrou no blindado, fechou a escotilha e não disparou o canhão! Imaginemos o que terá passado entretanto pelas cabeças dos homens do Maia nos milésimos de segundo seguintes à primeira ordem de disparo, contra eles, do Brigadeiro. Com o seu comandante “indefeso”, a meio caminho entre eles e o inimigo, e na iminência de sofrerem um disparo de um M47, o que terá levado aqueles homens a manter o sangue frio, refreando a vontade (ou o instinto) de apertar o gatilho? Felizmente ninguém disparou. Após diversas insubordinações do lado do Brigadeiro, há relatos de que, já depois de praticamente todos os seus homens terem desertado, terá ele próprio entrado num dos tanques para tentar disparar. Para felicidade de todos, o relativo desconhecimento que Junqueira dos Reis tinha do equipamento evitou o pior. Não conseguiu disparar porque o canhão estava comutado em modo manual e ele apenas conhecia o modo elétrico.

 

  1. O forte apoio da população de Lisboa aos revoltosos, que saiu à rua em massa, desarmada e sem medo.

O facto de a população ter saído em massa para as ruas, apoiando claramente os revoltosos, teve o poder inestimável de dissuadir os fiéis ao regime de contra-atacar. Por outro lado, galvanizou os revolucionários e desmoralizou o governo. O exemplo do largo do Carmo, que descrevo de seguida, é seguramente um dos mais significativos do papel que o povo de Lisboa teve na revolução.


O Brigadeiro Junqueira dos Reis não baixou os braços após a derrota na Rua do Arsenal. Nas horas que se se seguiram angariou e recrutou homens da GNR, da Polícia de Choque e do Regimento de Infantaria 1, para contra-atacar no Carmo. Esteve sempre em contacto com o posto de comando dos fiéis, que entretanto tinha sido estabelecido ad hoc no RL2, quartel onde se tinham refugiado horas antes os membros do governo fugidos do Terreiro do Paço. Acercou-se, então, do Carmo, com um séquito de oficiais, para avaliar o que poderia fazer. Pela reação amistosa dos civis percebeu que estava a ser confundido com os revoltosos. Percebeu também que, caso desse sinal contrário, a população os tentaria neutralizar, originando um banho de sangue. Constatou que a massa humana de civis, no Carmo e nas imediações, era tão densa que qualquer investida terrestre seria desastrosa. Mais uma vez não desistiu. Contactou via rádio o comando e sugeriu a utilização de meios aéreos para um ataque cirúrgico ao Maia, que estava já em posição de ataque ao quartel do Carmo. Um helicanhão levantou então voo, cerca das 13h30, e sobrevoou por alguns minutos o largo do Carmo. O ataque foi abortado simplesmente porque a confusão era tal que não se distinguiam civis de militares. Os fiéis terão finalmente percebido que um banho de sangue civil seria em vão. A revolução estava imparável e o governo estava só.

 

  1. A insubordinação e rendição dos tripulantes dos tanques M47 Patton dos Regimentos de Cavalaria 4 e 7, fiéis ao governo, e a neutralidade da fragata Gago Coutinho.

As insubordinações e rendições dos diversos elementos de Cavalaria 7 e Cavalaria 4 (tanques M47), que começou cerca das 10h00 da manhã com a rendição do Major Pato Anselmo na Avenida Ribeira das Naus, foram cruciais. Em primeiro lugar, o simples facto de terem ocorrido às primeiras horas do dia permitiu aos revoltosos ir acreditando, de forma crescente, na vitória. O poder de fogo ia, assim, aumentando do lado da revolução e diminuindo do lado dos fiéis. Em segundo lugar, estas rendições tiveram um efeito de dominó muito útil. Eram homens que desertavam, uns atrás dos outros, e máquinas de guerra que, ou ficavam inertes, ou reforçavam a revolução. Estes homens foram recentemente apelidados por Alfredo Cunha e Adelino Gomes (jornalistas que fizeram o mais completo trabalho de cobertura daquele dia) de “os rapazes dos tanques”, que, pelo papel importante que tiveram, foram uma espécie de heróis do avesso.


A fragata constituiu uma incomodativa incógnita durante várias horas daquela manhã. Não se sabia o que iria fazer. Certo é que nunca fundeou, e manteve sempre os canhões apontados para o ar, em sinal de paz, contrariando as ordens do seu Estado Maior. Quando finalmente chegou a garantia de que se manteria neutral, e, portanto, tacitamente ao lado dos revoltosos, nasceu uma alma nova aos homens do Maia. É que o fogo da fragata seria demolidor.

 
Tivesse um só destes fatores falhado e o 25 de abril poderia ter-se transformado num banho de sangue, sem vencedor certo e com consequências devastadoras para o país. Independentemente das razões, ganharam os revoltosos, permitindo que os heróis regressassem a casa, exaustos mas ilesos!

O 25 de abril foi visto pela imprensa internacional como uma revolução que praticamente não derramou sangue, facto que causou espanto generalizado por esse mundo afora. Mas a expressão “praticamente”, neste contexto, é quase perniciosa. A verdade é que morreram 5 pessoas, 4 das quais eram populares que se manifestavam na Rua António Maria Cardoso, em frente à sede da PIDE. O quinto morto era um elemento da própria PIDE. Para os familiares destes cinco homens, o 25 de Abril ficou indelevelmente marcado pelo sangue dos seus. Fernando Giesteira, 17 anos, José Berneto, 38 anos, casado, pai de quatro filhos, João Arruda, 20 anos e Fernando Reis, 23 anos, casado, foram vítimas dos disparos inqualificáveis, feitos cerca das 20h10, por elementos da PIDE, sobre manifestantes indefesos, a partir de uma janela da sua sede. Não havia nenhuma força militar revoltosa nas imediações e Marcelo Caetano já se tinha rendido. Otelo Saraiva de Carvalho viria mais tarde a assumir que fora um erro de avaliação que tinha causado aquele infortúnio. O movimento tinha muito pouca informação sobre a polícia política, tendo assumido que bastaria a rendição do governo para arrastar a PIDE. Na verdade, os revoltosos eram poucos e não chegavam para tudo. Após a morte dos quatro populares, dirigiram-se vários militares revoltosos para a Rua António Maria Cardoso. É então que, cerca das 21h30m, o servente António Lage, de 32 anos, membro da faixa hierárquica mais baixa da PIDE, tenta escapar a uma detenção. A fuga valeu-lhe um tiro certeiro disparado por um militar. Agonizou cercado de manifestantes que lhe gritavam “um PIDE morre na rua”. Os episódios da Rua António Maria Cardoso são, seguramente, os mais feios daquele dia.

 
Em 1974 eu tinha 10 anos de idade e vivia em Santarém. Por essa razão presenciei, no dia 26 de abril, o regresso da coluna da EPC à cidade e a receção apoteótica que os populares lhe fizeram. Foi um momento de indescritível emoção. Da varanda de casa dos meus pais, que tem vista privilegiada sobre o desembocar da Estrada Nacional 3 na zona urbana de Santarém, eu assisti incrédulo à subida lenta e ruidosa da última reta da estrada, e ao curvar à esquerda, já na cidade, de todos aqueles blindados e camiões, onde os soldados, em pé, acenavam. A população gritou mais alto que os roncos uníssonos das máquinas de guerra. Durante as últimas vinte e quatro horas eu tinha bebido toda a informação possível que jorrava em golfadas ininterruptas da rádio e da televisão. Por isso já conseguia perceber o que se tinha passado. Sabia que estava a assistir, da minha varanda, ao regresso dos heróis a casa.


Nos anos que se seguiram houve sempre festa rija durante as comemorações do 25 de Abril em Santarém. De um programa vasto, destacava-se como ponto alto um grande espetáculo no dia 24 à noite no cineteatro Rosa Damasceno. Não falhavam os cantores de intervenção mais consagrados, Zeca incluído, que atuavam entre discursos emocionantes e inflamados, fossem eles os do edil ou os do capitão de abril. No final cantava-se a “Grândola” e o hino nacional, e o teatro “vinha abaixo”. Talvez por isso hoje esteja em ruínas!


Lembro-me que na plateia nunca faltava o Maia, sempre com ar de estar ali a contragosto e, por isso, bastante enfiado na cadeira. Não gostava mesmo nada de protagonismo. Não me lembro nunca de o ver discursar naquelas ocasiões. Quando, a pedido de um qualquer orador, um holofote o encontrava, apontava para ele no meio das várias centenas de pessoas que estavam na plateia, e lá o víamos a acenar timidamente com a mão, enquanto esboçava um sorriso amarelo e se enterrava ainda mais na cadeira.


Numa dessas sessões, não me lembro exatamente quando, devendo eu ter 13 ou 14 anos, um dos participantes convidado foi o Vítor Crespo. O Vítor Crespo era o único oficial do movimento que pertencia à Armada, tendo participado desde o início nas reuniões conspirativas. No dia “D” esteve no posto de comando da Pontinha ao lado de Otelo Saraiva de Carvalho e, subsequentemente, foi membro do Conselho da Revolução desde a constituição desse órgão governativo. Era para mim um dos heróis. Acontece que, para além desse papel importante que desempenhou na vida nacional, desempenhou outros papéis menos relevantes, como o de jogador de futebol em peladinhas que disputou com o meu pai nos átrios do Liceu D. João III, em Coimbra. Eram exatamente da mesma idade e tinham sido colegas de turma. O meu pai não quis perder a oportunidade de mo apresentar. Lá fomos aos tropeções pelas filas mais à retaguarda da plateia até às filas da frente onde ele estava. Como de costume o teatro estava apinhado de gente. O homem era espadaúdo, tinha um bigode imponente e envergava um jaquetão azul escuro. Os chumaços nos ombros ainda o tornavam maior. Feitas as apresentações, deu-me um abraço sufocante e disse-me com voz grave e rouca “os amigos dos meus amigos meus amigos são”.


Também por esses anos, finais de 70, eu passava belos dias de verão na casa dos pais do meu grande amigo Rui, no Pombalinho. Freguesia do Concelho da Golegã, o Pombalinho está ladeado pelo Tejo, pelo Alviela e pelo Almonda. Se houvesse, em Portugal, uma eleição para a terra mais ribatejana do Ribatejo, o Pombalinho, se não ganhasse, ficaria no pódio. Era então no recinto das festas de verão do Pombalinho que, entre atuações de “as doce” e do Clemente, ou de quaisquer outras figuras da moda do momento, o Rui me acotovelava quando avistava o ilustre filho da terra, e me dizia: “olha, aquele é o Costa Braz!”. Costa Braz também tinha feito parte do movimento conspirativo dos capitães, e assumiu importantes cargos políticos após o 25 de Abril, tendo sido um dos subscritores do “documento dos nove”. De entre as muitas tarefas que desempenhou em prol da construção democrática, destaca-se a de ter sido responsável pelo recenseamento eleitoral efetuado antes das primeiras eleições livres de 1976. O Pombalinho, para além de me ter ajudado a perceber melhor a essência do Ribatejo, deu-me a conhecer mais um homem de abril.

 
Certo é que não há glória de vencedores sem vergonha e desonra de vencidos. A esse propósito não posso deixar de relatar o facto de, um ou dois anos após o 25 de Abril, ter conhecido, ainda que apenas de vista, o Sr. X, ex-informador da PIDE. O Sr. X tinha sido funcionário não docente no Liceu Nacional Sá da Bandeira onde os meus pais eram ambos professores. Vá lá saber-se porque constrangimentos da vida, um dia decidiu acumular as funções de contínuo com as de informador da polícia política. Nos dias seguintes ao 25 de Abril o Sr. X, por razões óbvias, foi humilhado por alunos e professores, grupos dos quais os meus pais não fizeram parte. Apesar de tudo teve mais sorte que o seu colega António Lage! Pouco tempo depois os arquivos da PIDE foram abertos à consulta pelos cidadãos. Lembro-me de o meu pai ter lá ido e de ter constatado que havia uma meia dúzia de reportes mais ou menos inócuos com o nome dele, que eram evidentemente da lavra do Sr. X.  Não sei o que aconteceu depois, mas sei que o Sr. X só voltou a circular pela cidade um ou dois anos mais tarde. Não falava com ninguém e ninguém falava com ele. Deambulava pela cidade com figura pouco aprumada, de mãos atrás das costas, ligeiramente curvado para a frente e sempre a olhar para o chão. Quando, por milagres da visão periférica, se apercebia que se iria cruzar com o meu pai, levantava ligeiramente o olhar. O meu pai então cumprimentava-o com deferência “Boa tarde Senhor X, como tem passado? A família?”. Ele endireitava-se e respondia com igual cerimónia “Bem muito obrigado Senhor Doutor! E os seus?”. Voltava a inclinar-se e seguia caminho no meio das brumas do ostracismo a que já estaria habituado. Em pleno PREC e no calor de todas as paixões políticas, eu achava deveras estranha aquela atitude do meu pai. Hoje percebo. Era apenas mais uma atitude que revelava a sua superioridade moral.


Nos anos seguintes acompanhei avidamente a evolução da política portuguesa. Lembro-me sempre com emoção das primeiras eleições legislativas em 1976, que todos lá em casa seguimos até de madrugada pela TV, olhando insistentemente para a subida a conta-gotas das percentagens partidárias. Foram longos, difíceis, mas muito interessantes, os caminhos da democracia em Portugal. Eu cresci a observá-los atentamente.
 
Devemos o país que temos hoje àquelas centenas de homens que, a troco de nada, ganharam militarmente a revolução no dia 25 de Abril de 1974. De entre eles sobressaiu merecidamente Salgueiro Maia como “o herói”, mas todos os outros foram cavaleiros sem cavalo, heróis sem nome, e por isso não heróis. Não quiseram colher os louros da fama. Limitaram-se a comer as almôndegas com esparguete, que lhes foram servidas no Colégio Militar, no dia 25 à noite, e em seguida foram desmobilizados, regressaram às suas terras e famílias, estudaram, trabalharam e tiveram filhos e netos criados em democracia plena, para quem, felizmente, as expressões “censura”, “PIDE” ou “ditadura” representam meras referências de manual de História. De entre esses filhos e netos, nenhum será analfabeto e muitos haverá que são investigadores de renome, músicos de sucesso ou engenheiros de vanguarda. Foram afinal esses os louros que os *Chevaliers de Pas colheram.

 

 
*Chevalier de Pas é considerado o primeiro heterónimo de Fernando Pessoa. Criado pelo poeta quando tinha apenas 6 anos de idade, este heterónimo seria já uma revelação do seu génio. Em tenra idade, e numa língua não materna, já teria percebido o interesse de usar o duplo sentido em francês da palavra Pas (passo e negação) a favor da ambiguidade da personagem que criou.

 

 

Fontes:

Jornal "Público"

Jornal "Expresso"

António de Oliveira Marques, Breve História de Portugal, Editorial Presença, 4ª edição, 2001

Alfredo Cunha, Adelino Gomes, Os rapazes dos tanques, Porto Editora, 2014

Gérald Bloncourt, Um olhar comprometido, Converso Editora, 2015

Robert Bréchon, Estranho estrangeiro, Circulo de Leitores, 1997

 

João Pedro P. Amaral


Lisboa, 26 de Maio de 2021

 

Terreiro do Paço, "Les Chevaliers de Pas", 6h45 do dia 25 de Abril de 1974. Estava tudo a começar em Lisboa!