As barbearias da minha vida
Os primeiros cortes de cabelo de que me recordo foram-me feitos no salão Guerra, cabeleireiro de senhoras instalado num primeiro andar de um prédio oitocentista do Largo do Seminário, em Santarém, que tinha vista privilegiada sobre a estátua do Marquês Sá da Bandeira. Estávamos no início dos anos setenta e era a mise a moda capilar feminina. Recordo pouco do salão, com exceção da impressão que me causaram aqueles desmesurados capacetes sobre as cabeças das senhoras, que lhes davam um aspeto quase extraterrestre. Quando chegava, pela mão da minha mãe, observava atentamente a receção cerimoniosa do Sr. Guerra, sujeito baixo e gordo, que apaparicava sem descanso as clientes. A dada altura uma das cabeleireiras metia-se comigo, sentava-me numa cadeira e cortava-me o cabelo em três tempos, enquanto a minha mãe engrossava as fileiras do corpo de aspirantes a astronautas escalabitanas. Uma coisa é certa, não me lembro se os cortes me agradavam no final porque era muito pequeno. Mas, mesmo que tivesse discernimento para os apreciar, estou em crer que os detestaria a todos.
Mais tarde, já com 12 ou 13 anos, comecei a ir sozinho a uma barbearia pequena, de três cadeiras, das quais uma nunca tinha barbeiro de serviço, instalada na rua do cineteatro Sá da Bandeira, velha sala de espetáculos, que tinha uma plateia com cadeiras de madeira, um bar ao ar livre e onde passavam as fitas do Trinitá e do Travolta, entre muitas outras películas em reprise. O funcionário que fazia a projeção não devia ser grande profissional. De tal forma que, numa exibição de “E Tudo o Vento Levou”, exibiu a terceira bobine antes da segunda, o que nos provocou uma leve sensação de cinema pós-modernista. Essa barbearia era taciturna e cheirava a bafio, mas a força do hábito e o facto de, entretanto, já ser lá conhecido levou a que tivesse continuado a frequentá-la até aos 18 anos. Quando lá ia, aproveitava e dava uma vista de olhos pelo cartaz do cinema. Nessa a altura, talvez por eu ser muito novo, os barbeiros ainda não me faziam a pergunta da praxe: “então, como vai querer o cabelo?”. Não, limitavam-se a executar um corte que lhes saísse da inspiração do dia e da força do hábito. Não houve um único corte que me lá fizessem que tivesse sido do meu agrado. Ou porque ficava com as orelhas demasiado salientes, ou com a nuca rapada, ou com a franja curta, saía de lá sempre com a sensação de desconforto de quem tem um cabelo ridículo. Demorava pelo menos uma semana a recuperar. Mas a verdade é que continuei sempre a lá ir, convencido de que era o grau de exigência daquela idade a prevalecer e de que talvez a idade adulta me viesse a eliminar aquele pequeno escolho da vida.
Chegados os 18 anos, fui estudar para a Faculdade e mudei-me para Lisboa. Passei a frequentar, erraticamente, as barbearias mais baratas das zonas da Alameda, Areeiro, Campolide e Amoreiras. Agora já me perguntavam sempre “então, como vai ser, o cabelinho?”, pergunta à qual eu tinha muita dificuldade em responder. Balbuciava, a medo, uma descrição do que queria, sempre com a sensação de que as minhas palavras assinavam uma sentença de morte à estética do corte. Depois, fui percebendo ao longo do tempo que, fosse qual fosse o meu desejo, vertido na descrição mais completa de que era capaz, o corte saía sempre mal e diferente do que eu imaginava. A dada altura comecei a descrever o corte sempre do mesmo modo, para testar vários barbeiros. Foi tudo em vão. Os cortes saíam sempre diferentes e maus. Comecei a conformar-me, pensando para comigo que seria um problema sem solução. Achei que teria de me habituar à ideia de viver com um cabelo ridículo, durante uma ou duas semanas após o corte, até ao final dos meus dias. Considerei comprar um chapéu ou um boné, mas acabei por limitar-me a espaçar mais os cortes no tempo. Foi então que, num final de tarde, reparei numa barbearia fina na Praça de Londres, instalada uns metros à frente da Mexicana. Tinha as paredes todas forradas de mármores pretos e brancos, uma senhora a fazer marcações e a receber clientes e três barbeiros vestidos de igual. As cadeiras davam nas vistas pelo brilho das aplicações metálicas cromadas a contrastar com os estofos de pele grená. Pensei “ora aqui está uma barbearia onde os cortes devem sair bem”. Não hesitei e decidi fazer um teste. Tomei nota da tabela de preços e do número de telefone e rumei esperançoso a casa. No final dessa semana contei as últimas moedas e notas que me sobravam da semanada e decidi marcar, por telefone, uma visita à barbearia chique da Praça de Londres. Ainda conseguiria pagar um corte de cabelo e até, talvez, uma barba. À hora marcada, compareci com um ligeiro aperto no estômago. Conduziram-me à cadeira e, quando o barbeiro se aproximou, eu disse de imediato, tentando dar firmeza e tonalidade encorpada à voz, “barba e cabelo, por favor”. O corte, precedido de uma lavagem, decorreu sem percalços. Quando chegou a vez da barba, o alfageme trocou o encosto de cabeça, rebateu as costas da cadeira e preparou os utensílios. Meu Deus! Aquilo teve requinte. Meteu pincel e espuma de bisnaga e um esgrimir da lâmina com sageza e agilidade, tanto na passagem ao correr do pelo como no escanhoamento. No final aplicaram-me toalhas embebidas em água quente, pedras de toque fresco, bálsamos com fragrância e pó de talco. A barba ficou perfeita e a pele macia e hidratada como a de um bebé nascido em berço de ouro. Já o corte, quando acordei do torpor do barbeado e o pude avaliar, vi que tinha ficado mal, tão mal como os das barbearias baratas. Ficou cheio de poupas e risca ao lado, um verdadeiro horror, uma vergonha! A experiência valeu por aquela espécie de ritual iniciático masculino. Foi a primeira e última vez que mandei fazer a barba à navalha numa barbearia.
Entretanto, já com família e a viver em Vila Franca, o calvário continuou. Cheguei quase a ser escorraçado de uma pequena barbearia que havia numa das ruas estreitas do centro, porque o barbeiro cometeu a imprudência de me cortar o cabelo à tesoura, sem previamente o molhar. Acusou-me de que, a cada tesourada, o meu cabelo lhe voava para a cara e o agredia, como se de pequenas agulhas projetadas se tratasse. O resultado do corte foi mau, claro está.
Depois, mudei-me para Benfica, em Lisboa, onde vivi cerca de 18 anos. Nos primeiros tempos, habituei-me a uma barbearia instalada num gaveto esconso entre a República da Bolívia e o Uruguai. Por lá me fui mantendo, embora os resultados fossem sempre bastante maus. Quem me cortava o cabelo era quase sempre um velhote ancho, de cabelos brancos e muito bonacheirão. Notei, ao longo do tempo, que os cortes iam piorando, até ao dia em que o desastre foi total. De facto, ao longo desse derradeiro corte, apercebi-me de que algo estava a correr muito mal. O velhote ia-me cortando o cabelo, ao mesmo tempo que olhava para todo o lado, menos para a minha cabeça. Vi-me ao espelho no final. O pior tinha acontecido. Vim a saber, mais tarde, que o senhor sofria de cataratas e que, naquela fatídica tarde, estava a dois dias de ser operado. Chegado a casa, já em frente ao espelho grande da casa de banho e munido de um contra espelho de mão, vi-me com o pior corte de cabelo da minha vida. Notavam-se, claramente, miseráveis tesouradas por todo o cabelo e em alguns sítios havia quase peladas. O cabelo estava disforme. Saí espavorido de casa e entrei na primeira barbearia que me pareceu oferecer alguma confiança, na estrada de Benfica, em frente à Escola Pedro de Santarém. Depois de contar o sucedido (sem, contudo, denunciar o “criminoso”), sugeriram-me um “pente 4” por todo o cabelo e barba, bem ao estilo “action man” da minha infância. Ficou-me muito mal, mas foi uma solução de recurso. Nos anos seguintes, lá me fui mantendo como frequentador daquela barbearia, sempre com resultados sofríveis. O barbeiro que me cortava o cabelo com mais frequência era um homem boçal, mas simpático, da zona de Vinhais, que tagarelava o tempo todo. Seria, provavelmente, oriundo de uma aldeola perdida na Serra de Montezinho e terá aprendido o mister na tropa, lá por Bragança. Fazia cortes ao estilo militar, que tinham, pelo menos, a vantagem de saírem sempre iguais e com forma.
Veio, entretanto, a moda dos cabeleireiros de senhora aceitarem também homens como clientes. Foi então que, cansado dos cortes ao estilo marcial, decidi aceitar o desafio de alguém que me sugeriu tentar a sorte num famoso cabeleireiro de senhoras da época, que tinha começado a receber também clientes masculinos. O salão estava instalado no piso -1 do Fonte Nova, mesmo em frente à escadaria principal de acesso ao piso térreo. Marquei a hora e fui, mas fui de pé atrás. Senti-me, desde o início, deslocado, no meio de tantas senhoras de grandes caracóis louros. Os cheiros das tintas, dos vernizes e das lacas deixou-me zonzo. Eu era o único homem cliente no salão e, por isso, quase que me sentia obrigado a conter tudo aquilo que de mim exalava de masculinidade. Quem me veio cortar o cabelo foi um cabeleireiro homem, que rodopiou à minha volta durante demasiado tempo, talvez para justificar o preço exorbitante do serviço. Entre um pincho e uma voltareta, esticava-me uma madeixa de cabelo, usando o indicador e o anelar e zás, aplicando uma tesourada certeira, aparava-me não mais de três milímetros das pontas do cabelo. Comecei a temer pelo resultado. Quando deu o corte por acabado, lavou-me de novo o cabelo. Regressados aos nossos lugares, pegou numa escova e num secador de mão e eu temi o pior. No final, abri os olhos e vi-me com o cabelo do mesmo tamanho, apenas com a diferença de, terminada a operação, exibir um penteado efeminado. Fiquei horrorizado. Porque será que os cabeleireiros de senhora não sabem que o cabelo de um homem se corta com francas tesouradas, tal como um jardineiro esculpe uma sebe com a sua tesoura de poda? Paguei e saí a correr, galgando, dois a dois, os degraus da escadaria. Enfiei-me no carro e voei para casa. Corri para o duche, desfiz, com raiva, o penteado e jurei a mim mesmo nunca mais voltar a entrar num cabeleireiro de senhoras. Regressei ao barbeiro transmontano, onde a tesourada era firme e franca, mantendo-me por lá alguns anos mais, embora os cortes continuassem a não me agradar.
Depois de Benfica vivi em Linda-a-Velha e depois em Campo de Ourique. Foi uma altura em que frequentei cabeleireiros mistos de centro comercial que, contudo, tinham a zona feminina bem delimitada da masculina. Tirava-se uma senha à entrada (como nas farmácias) e esperava-se pela nossa vez, que haveria de aparecer num ecrã visível do exterior. Do lado masculino, funcionava como uma linha de montagem e os cortes eram extremamente rápidos. Talvez por isso fossem também bastante maus.
A pandemia chegou em 2020 e vi-me na necessidade de ter de cortar o cabelo em casa. Recorri aos conhecimentos que adquiri ao logo dos anos, vendo diversos barbeiros a cortarem-me o cabelo, e, com ajuda, cortei o meu próprio cabelo à tesoura. Por estranho que possa parecer, fiquei mais agradado com o meu corte do que com a esmagadora maioria dos cortes feitos por profissionais.
Aliviaram as medidas de restrição e eu comecei a reparar nas barbearias de ar retro que, entretanto, já pululavam pela região de Lisboa. À imagem das barbearias do passado e com preços muito atrativos, tornaram-se alvo da minha curiosidade. Comecei por frequentar uma delas, em Lisboa, e o corte agradou-me. Percebi que os barbeiros eram quase sempre brasileiros. Com medo que tivesse sido um bambúrrio, repeti o barbeiro na vez seguinte. Ainda me agradou mais o corte e, melhor do que isso, o barbeiro seguiu as minhas indicações, dadas depois da pergunta: “…e como vai querê o cábêliü?”. A partir desse dia nunca mais deixei de frequentar as barbearias dos brasileiros. Caramba, aquelas “caras” sabem cortar os cabelos destes “gajos”!
Agora, frequento regularmente uma barbearia de brasileiros, em Cacilhas. Fico sempre satisfeito com o corte de cabelo e já pensei em escrever uma carta para o SEF, com a proposta seguinte:
Sempre que um brasileiro entre em Portugal, com intenções de cá fixar residência, pergunte-se-lhe se é barbeiro. Se for esse o caso, peçam-lhe imediatamente (logo ali no aeroporto) que faça cinco cortes de cabelo a cinco homens que se ofereçam como voluntários. Se pelo menos quatro desses voluntários ficarem satisfeitos com o corte, por favor, não hesitem, deem logo a nacionalidade a esse cara.
Se o procedimento for aceite, estou certo que muitas horas de stresse pós-traumático, decorrente de maus cortes de cabelo, serão poupadas aos portugueses.
Lisboa, 2 de Janeiro de 2023