O Velho do Mar

 

Parte III

 

Na noite do concerto, Maria sentou-se na primeira fila da plateia. Não tinha voltado a ver Louis desde a reunião preparatória nos Paços de Concelho, embora tivessem falado três vezes ao telefone para acertar alguns pormenores do recital. As luzes apagaram-se e Maria sentiu-se profundamente irritada com o pigarrear daqueles que não conseguem conter a garganta nos minutos em que há que guardar silêncio, antes da entrada dos artistas. Louis apareceu, então, elegantemente vestido de preto e branco, em passo lento, mas firme. Fez uma vénia ao público, que o aplaudiu timidamente, e franziu o sobrolho, numa tentativa frustrada de ver Maria através da poderosa cortina das luzes da ribalta. Durante todo o recital, Maria pairou nas notas do piano, como se de um navegar nas ondas do mar de Esmeraldo se tratasse.  No final, a audiência da sala explodiu num ruidoso aplauso de apoteose. Já nos bastidores, Louis aproveitou a primeira oportunidade que teve de estar a sós com Maria. Após um contido cumprimento, disse-lhe, sorridente e quase em surdina, como se de um segredo se tratasse:

- Tenho o mau hábito de não comer nada dez horas antes dos concertos, de modo que … estou a morrer de fome! Será que me daria o prazer da sua companhia numa ceia, num qualquer restaurante acolhedor em Lisboa?

Ela corou ligeiramente, mas respondeu, sem vacilar:

- Ah! Antes de mais, muitos parabéns pela sua atuação! Foi absolutamente maravilhosa e… claro que sim, apenas gostaria de mudar de roupa para ficar mais confortável.

Combinaram encontrar-se na morada de Maria da Paz, daí a uma hora. Quando Louis chegou à porta do prédio, ligou-lhe. Ela pediu-lhe para subir porque estava um pouco atrasada. Louis subiu nervosamente as escadas de madeira. Cada degrau rangia de forma diferente. Ao convite sorridente de Maria, entrou no apartamento diretamente para uma pequena sala. Um leve cheiro a madeira queimada pairava no ar, exalado por uma salamandra instalada no canto oposto à porta. Um doce cintilar de pequenas labaredas passava através do ventilador semiaberto, gerando três raios de luz ténue. O tubo da chaminé, em metal escurecido, entrava a direito num bonito teto apainelado de madeira avermelhada. Várias estantes, com muitos livros de lombadas coloridas, forravam a parede lateral. As duas janelas, de portadas interiores de madeira, deixavam passar a luz amarelada vinda dos candeeiros da rua. Outros dois pontos de luz quente adoçavam o ambiente: uma campânula metálica sobre uma mesa de madeira e um candeeiro com um grande abajur grená, por sobre uma pequena mesa junto a um maple individual, de traça antiga, em pele castanha. Pairava no morno ambiente, em volume baixo, mas encorpado, uma peça para piano, que Louis, imediatamente, reconheceu como sendo de Enric Granados. Maria ofereceu-lhe a poltrona, guardou-lhe a gabardine e pediu-lhe cinco minutos para se acabar de arranjar.

-Sabe Maria, aceito de bom grado, sobretudo porque esta sala é estranhamente acolhedora. Poderia ficar aqui sentado para sempre ... é que tenho a sensação de que vivi aqui confortavelmente toda a minha via passada.

Louis levantou um pouco o tom de voz, apercebendo-se de que ela não estaria longe, e continuou:

-Se eu soubesse que gostava de Granados, tinha incluído uma peça dele no recital desta noite. É um compositor excecional!

Maria assomou à porta:

-Eu gosto de Granados porque ele se inspirou muitas vezes em Goya, que é talvez o meu pintor preferido. Mas, Louis, se se sente bem aqui, posso preparar rapidamente uma ceia…

Sem sequer a deixar acabar a frase:

- Aceito, aceito, aceito!...claro, se não for incómodo.

- Incómodo? Nenhum, pelo contrário, gosto de fazer estas coisas.

- Eu ajudo, nesse caso…

Maria, com uma expressão muito sorridente, dando a entender que ele só atrapalharia, respondeu, abanando a cabeça:

-Não, ponha-se à vontade que eu não demoro nada. Mas, Louis, talvez fosse melhor fazermos um esforço por nos tratarmos por tu. O que acha?

Louis acedeu com agrado, tornava tudo mais fácil. Voltou a sentar-se, não sem antes pegar num grande livro com a obra completa de Goya.

Louis na sala e Maria na cozinha, estavam ambos com a sensação de que se conheciam desde sempre, mas que, em contraponto, tinham tudo por descobrir um do outro.

Maria entrou de rompante na sala e deparou com Louis a ler atentamente umas folhas que ela em tempos tinha posto a marcar a página onde estava a reprodução de “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808”, com o poema de “Carta a meus filhos”, de Sena. Louis estava a terminar a leitura e tinha os olhos brilhantes, quase lacrimejantes. Maria apercebeu-se mas, propositadamente, cortou o momento, pedindo-lhe :

-Abre, por favor, esta garrafa de vinho que eu volto já.

Louis, um pouco atrapalhado por ter revelado aquele seu lado, segurou na garrafa e no saca-rolhas e disse-lhe envergonhadamente:

-Não conhecia este poema, é lindíssimo e dá uma dimensão arrepiante ao quadro!

Falaram toda a noite, até ao despontar do dia. Quando os primeiros raios de luz natural entraram pelas janelas, Louis exclamou:

-Veste um casaco quente! Quero-te mostrar a casa dos meus pais.

Saíram de casa. O ar frio fustigou-lhes os rostos aquecidos. Louis ajudou Maria a apertar o anoraque, puxou-lhe o capuz, cobrindo-lhe a cabeça, e deu-lhe um abraço forte e ternurento. Apertou-lhe vigorosamente a mão, por sobre a luva de malha, e conduziu-a pela calçada:

-Vamos a pé até ao Cais do Sodré, apanhar o Metro.

Caminharam em sintonia, lentamente, sem dizer uma única palavra até quase à estação. Era sábado. Manhã cedo, a cidade ainda dormia. No último lanço de calçada, antes da entrada no metro, Louis disse:

-Não consigo conceber maior felicidade do que a de caminhar de mão dada contigo, numa manhã soalheira e fria, pelas calçadas desertas de Lisboa.

Maria da Paz estremeceu e cerrou mais a sua mão na mão de Louis.

O salão do apartamento das Avenidas Novas estava decorado com uma mescla agradável de peças clássicas e contemporâneas. Os tetos em estuque trabalhado contrastavam com o soalho em madeira envernizada. Junto a uma das janelas, um grande Steynway de cauda refletia os raios de sol que já irrompiam pelas portadas entreabertas. Louis pediu a Maria que se sentasse num maple ao lado do piano e tocou-lhe uma pequena peça de três minutos, que iniciava com momentos de emoção violenta, terminando com um andamento belíssimo e tranquilo.

-Lindíssima essa peça, de quem é?

-Compu-la para ti, agora mesmo, durante o tempo de percurso em que não falámos.

-E já lhe deste um nome?

-Talvez…: “Louis en Paix”

 

Maria cerrou os olhos por uma fração de segundo, dizendo-lhe:

-Um efémero momento, aqui contigo, valeu por toda a minha vida.

Acordaram, com os corpos entrelaçados, no grande canapé do salão, às três da tarde. Arranjaram-se e foram almoçar num pequeno restaurante de bairro.

 

Nas semanas seguintes, Louis e Maria estiveram sempre juntos. Trabalhavam ambos durante o dia e encontravam-se sempre às seis da tarde. Louis estudava e ensaiava peças, sentado solitariamente no seu piano de casa. Maria dividia a sua atividade entre a Câmara e o museu, passando o dia ansiosa por reencontrá-lo. Por vezes, durante a tarde, Louis passeava por Lisboa e recordava, com nostalgia, os locais da sua infância. Falava com Cappelletti ao telefone e ia-lhe dizendo que não tinha pressa de voltar, ao que ele, com uma gargalhada, lhe respondia invariavelmente: “desde que não te ausentes por mais de seis meses…”. Nos finais de tarde, cada reencontro era um novo encontro, como se nunca se tivessem visto e, em simultâneo, fossem amigos de longa data. Maria ia-lhe contando toda a sua vida. A pobreza digna em que viveu toda a sua infância e juventude. A ausência de pai e mãe. O heroísmo da sua avó Esmeralda, que a tinha criado e que era filha de uma prostituta do cais do Sodré, perfilhada pelo Velho do Mar.  O fascínio que a figura de Esmeraldo exercia sobre ela, o seu legado escrito, a sua abnegação e generosidade. Os inconsequentes três namoros que tinha tido até então. De Facto, até aos trinta e dois anos, Maria tinha quase sempre vivido na solidão e na melancolia. Contou-lhe o desgosto avassalador provocado pela morte da sua avó, durante a sua estadia na Holanda, a necessidade que sentiu de regressar a Portugal e como, a partir desse dia, passou a fazer do desamparo força de viver, inspirando-se na vida solitária de Esmeralda e de seu pai Esmeraldo. Disse-lhe, emocionada, a volta que a sua vida deu no dia em que o conheceu. O vazio que ela sabia que lhe habitava a alma, tinha sido preenchido pela presença dele, que lhe dava agora razões para não pensar mais nas razões da sua existência. A essência da sua vida era agora, ele, ela e o mundo, todos em harmonia.

Louis, ao contrário, não lhe contava tudo. Falava com muito entusiasmo e paixão da sua infância no bairro rico de Lisboa, mas omitia as visitas aos avós em Almada. Não se orgulhava dessas origens, talvez por vergonha, e, por isso, escondia-as. Falava muito sobre a sua ascensão meteórica ao estrelato da música erudita e sobre a sua fase de estudante em Paris. Quase sempre fazia realçar a sua ousadia e raramente deixava transparecer os seus medos e ânsias. Um dia contou-lhe que, numa entrevista recente, o pianista Lang Lang, em resposta a um jornalista do “New York Times”, que lhe perguntou se ele se considerava o melhor pianista do mundo, lhe respondeu: “Acho que sim, que sou, mas o Louis Alma toca a La Campanella, de Liszt, melhor do que eu.”

 

Maria fazia da sua vida um livro aberto, mas Louis só se deixava ver em glórias, sucessos e alegrias.

 

Um dia à noite, instantes antes de adormecerem, no apartamento das Avenidas Novas, Maria disse-lhe, em tom ligeiramente magoado:

-Louis Alma não é o teu nome verdadeiro. Porque é que ainda não revelaste esse teu lado?…

Louis, em tom de brincadeira, respondeu-lhe:

-Ah, meu amor, isso eu só te revelarei no dia em que tiver a certeza de que não consigo passar um segundo, apenas que seja, da minha vida, longe de ti!

E para amenizar um pouco, cantarolou dois versos da famosa ária de ópera:

-«(...)Ma il mio mistero è chiuso in me;

Il nome mio nessun saprà!(...)»

Louis apercebeu-se do fortíssimo impacto que esta resposta tinha tido nela, mas decidiu não tentar corrigir mais aquele momento de tensão, para no futuro poder usá-lo, quem sabe, a seu favor. Adormeceram sem trocar mais palavras.

O dia seguinte nasceu luminoso e muito frio. Louis acordou bem-disposto e foi de uma cortesia e ternura extremas para com Maria, de tal modo que quase a fez esquecer o infeliz episódio da véspera. Separaram-se para mais um dia de trabalho.

Já na rua, Louis refletia incessantemente sobre o que fazer a seguir. Tomou um breve café na Versailles. Voltou a sair, enrolou o cachecol em volta do pescoço, assertoou o sobretudo e vagueou longas horas a pé por Lisboa. Tinha de dar um passo em frente. Desceu as avenidas até ao Rossio e rumou ao rio, percorrendo a Rua Augusta. Sabia que, agora, havia um espaço enorme do seu ser completamente preenchido por Maria. Não tinha, no entanto, dado conta, antes de a conhecer, de que esse vazio lá estava. Aos quarenta e três anos, contudo, tinha medo de compromissos. Ao passar por debaixo do grande arco de entrada no Terreiro do Paço, o telefone tocou. Cappelletti, no seu sempre jocoso tom, pediu-lhe encarecidamente que fosse a Paris por dois ou três dias. Tinha assuntos inadiáveis que exigiam a sua presença. Que depois poderia voltar para o seu idílio por mais uns meses.  Ou então que levasse a sua Tágide. Aproveitavam e faziam um fim de semana romântico na cidade do amor e das luzes. Louis respondeu-lhe evasivamente que sim, que iria resolver o assunto e desligou, quase sem se despedir. Tinha medo de perder a liberdade e a sua vida glamorosa, cheia de seduções. Teria de deixar de ter amores fugazes de bastidores com jovens admiradoras. Teria de parar de descarregar encantos sobre esbeltas damas da nobreza europeia ou sobre sofisticadas milionárias americanas, que constantemente se lhe cruzavam no caminho. Tinha de parar com tudo isso e dedicar-se a Maria. Queria muito fazê-lo, sem reservas, sem mágoas, de forma natural. Maria merecia-o, sem sombra de dúvida. Quando chegou ao cais das colunas, sentou-se na cantaria de um degrau e olhou para o Cristo-Rei. Lembrou-se, com muita ternura e saudade, dos avós. Estava decidido. Nessa noite iria revelar o seu verdadeiro nome, sabendo exatamente o que isso implicaria.

Era sexta-feira. Maria pediu a Louis que a convidasse para jantar num restaurante pacato e que, depois, a levasse para casa. Estava cansada, era o final de uma semana agitada. Queria passar o serão enlaçada nele, a ler um livro e ouvindo um qualquer CD de piano, ao som do crepitar da salamandra. Apenas isso, que, contudo, tanto seria!

Já no sofá, Louis disse-lhe que, nessa manhã, tinha estado no cais das colunas a contemplar o rio e a outra margem e que isso o tinha feito pensar no Velho do Mar. Já que iam ler, que ela lhe emprestasse os escritos de Esmeraldo, porque ele gostaria muito de começar a lê-los. Maria acedeu, sensibilizada. Louis começou a folhear o dossier e, por mero acaso, fixou os olhos num capítulo a que Esmeraldo chamou “Amor infinito nas brumas do rio”. Começou a lê-lo com toda a atenção. Era um texto fluído e bem escrito. Quando chegou ao momento do salvamento dos jovens, Louis não queria acreditar no desenrolar da narrativa. Avançou sofregamente no texto e rapidamente chegou à identificação dos pais, Romão e Júlia.  Sofreu um forte golpe, empalidecendo subitamente. Confirmou que eram mesmo os seus pais através de alguns pormenores descritivos, mais adiante, que não lhe deixaram dúvidas. Faltou-lhe o ar. Precisava de sair e respirar. Levantou-se de rompante e pediu desculpa a Maria. Precisava de regressar a casa rapidamente. Tinha-se esquecido de que tinha prometido a Cappelletti o envio de uns documentos ainda nessa noite. Em seguida mentiu-lhe, talvez com o único intuito de a ferir, dizendo-lhe que partiria para Paris na segunda-feira. Maria disse-lhe, assutada:

-Mas, assim Louis? Sem combinarmos nada? Passa-se algo de grave que eu não saiba?...

Maria falava com a franqueza que só quem não esconde nada lhe é permitido usar.

-Não se passou nada, Maria, eu é que tenho de recomeçar a minha vida normal…

-Mas isso é um adeus inesperado?

-Un adieu ? Peut-être. Tout peut arriver !

Pegou no casaco e esgueirou-se pela porta de saída. Assim que pisou a calçada, arrependeu-se da brutalidade daquela despedida. Levantou o braço para chamar um táxi, que passava livre naquele preciso momento, e entrou apressado, como que em fuga de um qualquer perigo iminente.

Acordou abruptamente às cinco da manhã, deitado no canapé do salão de sua casa, atormentado por um horrível pesadelo: o Velho do Mar, cantando uma canção ininteligível, que soava como um choro arrepiante e copioso, afastava-se na sua barcaça, por sobre um plúmbeo espelho de água, levando, deitado, o corpo de Maria, coberto por um manto de esmeraldas.

Louis saiu desesperado para a rua. Tinha o desespero daqueles que cometem um erro funesto e sabem que, caso o não consigam reparar, nunca mais se poderão perdoar a si próprios. Sábado, àquela hora, não passavam táxis pelas ruas. Correu para a praça mais próxima e meteu-se no único carro estacionado. Gritou o endereço de Maria e pediu urgência.

A porta do prédio estava entreaberta. Empurrou-a e galgou as escadas até à entrada do apartamento. Ainda tinha as chaves da casa de Maria no bolso. Entrou de rompante  sem tocar à campainha. Rapidamente percebeu que ela não estava e que tinha saído havia pouco tempo. O desespero aumentava a cada segundo que passava. Lembrou-se de ir à garagem onde Maria guardava o carro. Tinha a porta aberta e o carro não estava no lugar habitual. Louis saiu para a rua sem saber o que fazer. Ligou-lhe cinco vezes consecutivas. Maria não atendeu. Deixou passar uns segundos e enviou-lhe uma mensagem. Uma última missiva que talvez não chegasse a tempo, pensou. Voltou para o prédio de Maria e sentou-se na soleira da porta, desesperançado.

Após a saída de Louis, Maria ficou sem reação. As palavras «Un adieu ? Peut-être. Tout peut arriver !» ressoavam-lhe na cabeça, dolorosamente, incessantemente. Um vazio gelado invadiu-a e o seu corpo ficou dormente e imóvel. Precisava de ajuda para reagir, para se poder levantar e esmurrar o destino. Prostrada na cama, pensou naquelas vezes em que a sua Avó Esmeralda lhe contava quando, em criança, rompia em prantos de tristeza, sem justificação e que só um abraço do Velho do Mar, quente e forte, a acalmava, porque, dizia ela, era um abraço que continha apenas amor do mais puro que há.

Maria adormeceu. Acordou, calma, às cinco da manhã. A solução era voar para os braços do Velho do Mar. Saiu de casa e foi até à garagem onde guardava o seu velho Peugeot 106, que raramente usava. O carro pegou à terceira e libertou uma nuvem de fumo branco pelo escape. Tomou a direção de Alcântara e, em poucos minutos, alcançou o acesso à ponte.

(continua na Parte IV)