A SOMBRA LINEAR DOS ESPÍRITOS

 

 

 

1

Há ruídos de morte dentro das grutas

onde os gansos, e seus anjos de medo e lágrimas,

cantam as chamas dos arrozais.

 

Criei em mim toda a noite tecida pelos gritos.

Criei no céu, e escrevi com as tintas puras, todos os pudores.

Pus uma máscara vermelha em minha face

 

E despontaram agonias em feixes de pano.

 

2

 

Ela arranjava levemente os seus cabelos de cobre fundido;

tinha nos olhos um não sei que espinho agreste, feito tigre ou urso.

Fui ter com ela e depus-lhe uma rosa no colo negro...

Que mágoas manam daqueles olhos

vivos, agudos, que repudiam e renegam

qualquer horizonte rasgado

por aves nocturnas e segredos.

 

 

 

4

Ela vai no Mitsubishi estrada fora,

gangrenas de vento que atravessam o seu olhar cinzento

de elevador, que fanfarra de exactidão e linearidade clara e precisa

no seu gesto que é de turmalina.

 

5

A LUTA HUMANA

 

Do meu castelo a ponte levadiça

cobre um afluente do Letes

 

Trouxe todos os meus sonhos

no meu cavalo de aço

 

Cai neve nas telhas das torres

enquanto uma coruja faz um feitiço

 

Meus sinos que se quebram

no cetim da noite

 

Estão esmaltados todos os corais

que luzem nos fogos

 

Bordei todas as lágrimas

esperando sorrir no fim de tudo

 

  1. Gabriel forjou-me a espada e a lança

com que destruí os gelos brancos

 

Ouço gritos nos corredores

que se desfazem em diademas lunares

 

Um barco e um berço

entre a lisura do negro

 

Versos antigos que decoram

meus pátios, meus terraços

 

Incêndio funesto

que me engole e me devora

 

E os dentes e presas

de uma pantera invisível.

 

6

 

Vagas de medo docemente

 

no coração petrificado.

A morte, o desejo, o sonho,

uma alma só compõem dentro de mim;

o sangue escureceu.

Há ramos de carvalhos sacudindo as suas mágoas

e brilha qualquer coisa na espada da princesa mongol.

Tenho medo da fúria e do destino.

 

 

7

Coloquei-me à sombra da deusa

que comia uvas ao redor das balanças.

Traguei, um a um, os seus pesadelos

quiméricos, obscenos;

restos de sonho perdidos no fio do tempo.

Mãos côncavas, o vinho derramando

em relógios de vento as horas da cobardia.

 

 

 

 

 

 

8

Desfolhei, um a um, todos os crisântemos

à luz da lua leitosa.

 

Um lobo pousou a sua máscara

de Lúcifer junto à minha face.

 

Foi como um verso de Eliot

por sobre trevas e carvão.

 

Tudo dorme, espiga alta, rã coaxando

pó e nada neste cais de angústia.

 

Um incêndio devorou todas as tílias.

 

 

9

Quando, minha Mãe, eu te vi morta,

quando olhei o teu rosto exangue,

desejei que Deus me abrisse a porta

do Paraíso, e me gelasse o sangue.

 

Que dor, Mãe, de te ver sem vida

(minhas existências, de bom grado mato-as) -

queria era ver-te viva e divertida

sem essa impassividade das estátuas.

 

Descerrei as tuas pálpebras para ver o teu olhar

e aí eu senti que tu dizias:

"Eu fico bem, filho, fico a velar

por ti, até que acabem os teus dias."

 

 

10

Quatro felicidades bem definidas na ausência

do campo raso e negro que trilhámos

sozinhos na companhia dos leões

elmos de ouro, barba longa

e o anjo da perdição que trazia

nas mãos brancas todos os símbolos

Aí jogámos sozinhos a fortuna

enquanto atávamos nossos longos cabelos

e levávamos tantos sonhos cor de alegria -

feitiços de Bach que formavam poças

Mãos abertas, vamos, no brilho das maçãs

perfumes e mariposas pelo ar

tempo de negar as vozes

do coração

 

 

 

 

11

A música desenha um círculo de silêncio

no fundo da minha alma.

 

12

 

Na floresta gelada

há fadas azuis

e suspiros

 

*

 

Uma lágrima

é feita

de luz e de silêncio

 

 

13

Um a um despontavam

pequenos risos

como estrelas

E o destino brilhando no horizonte

era um país de promessas

 

14

Num campo de flores

o amor nasceu

no coração de uma abelha

 

*

 

Os bules dançam

no salão

da morte

 

15

Há tristeza e sal-gema naquelas fogueiras

 

Partamos as couraças das demandas obscuras

que empreendemos contra a fúria

Sono e pressa e cansaço

brisa misteriosa

 

Poisa um corvo na paisagem que Deus pintou

e caminhando no solo ácido

potros de lava me carregam

 

 

 

 

 

 

16

Um desmaio de silêncios imperfeitos,

 

subitâneas estrelas, cujas franjas, de pudores tecidas

morrem ao bater no muro da melancolia.

E percorro este mar de mágoa,

penitente e firme, avanço turbado;

cisnes ondulam mecanicamente

no meu ventre, enquanto marcho,

são forças que um anjo me fornece, enquanto toca fagote,

Que será dos raios que brilham nas caveiras?

Que será das lágrimas que vertem as gaivotas?

Que será do riso que esboçam os jacintos?

Marcho firme e lento -

a solidão guarnece-me o corpo, como um escudo.

 

 

17

Quando te vejo os cabelos anelando,

junto ao rio, com flores ao pé de ti,

horas perco os teus olhos olhando,

que são de um finíssimo lápis-lazúli.

 

Borboletas ondeando por aí,

amor, e a tua face bela rodeando;

e as negras nuvens - eu as repeli

para que Phoebus em ti se vá mirando;

 

no chão um dossel se faz em que me deite -

é a lua, que, com ar risonho,

derrama no chão gotas de leite.

 

E fico a olhar-te tanto, que eu suponho

que as deusas usam como enfeite

o carmim da tua boca e o teu olhar de sonho.

 

18

Amo-te mais que a luz dos horizontes

desses poentes, rubros, como pesadelos;

amo-te, como a lua a terra, as flores os montes,

vivo por ti, lutando só por entre os gelos;

 

O teu riso tem a frescura das fontes,

teus olhos são topázios (como adoro vê-los!),

e que linda ficas, quando, entre os montes,

te coloco lilases nos cabelos!

 

Fica perto de mim, Amor, fica perto,

escuta o meu olhar chamando o teu olhar

que da tua alma jamais seja liberto;

 

deixa-me beijar-te as mãos, olhar-te e sonhar

que mil quimeras voejam num deserto

e que morrem, como eu, para te encontrar.

 

 

19

Bateu à porta uma pancada forte!

Fada, ladrão, forasteiro ou mendigo?

Um som cruel, frio e inimigo:

"Abre, Francisco, sou eu, a Morte!"

 

Soprava rudemente o vento norte;

caiava a lua o meu abrigo.

"Vem para mim, sê feliz comigo...

Não terás desgostos nem má sorte"

 

Dei a mão à morte, débil e contrito;

e ela, apontando o Céu, disse:

"Olha, meu querido, ali é o Infinito..."

 

E eu fiz um esgar flébil, e aflito,

como se do céu um raio assim surgisse

e a luz do meu corpo tornava-se granito.

 

20

FÚRIA

 

Entrei subitamente no edifício da fábrica de automóveis;

por entre tubos e metais, beleza de ferro e zinco, que cisão entre os humanos...

Eram dias de chamas obscuras e lassos ramos de oxigénio em combustão perene,

que nada de mim se apartou daquelas gotas de explosão;

 

Que lâminas lúcidas, cruzando-se, formavam danças de relâmpagos;

era dia de, em cada posto, em cada ponto, todos se felicitarem como irmãos,

e nenhum queria fazê-lo, porque, nos quadros vanguardistas,

há harmonia em desalinho e fuga.

 

Juntaram-se todos no átrio, as faces negras de mineiros,

e disseram: «Aqui estamos!»

E surgiu um touro metalomecânico por entre gerânios de vidro,

pois que os ovários fecharam as portas à solidão ferrugenta.

 

Que de formas, que de novas formas, perversa atenção,

eles ataram os fios de aço e todas as ligaduras ao destino que brilha lá fora;

são acústicas escuras que navegam nos teatros do silêncio

onírico das nossas intenções mais recuadas.

 

É de negação essa mesa lisa e papel sujo, quase invisível

em que um signo muito antigo desdobra suas pontas rectas,

cuja finura e estilo drenam qualquer coisa de imaginário

entre o oceano e a marmota.

 

Eles param (ah, o Sol luta com Titânia), e símbolos máximos de um desejo

se manifestam pelas asas do fogo;

tempo de viver a cedência da razão

profusa e lenta.

 

 

21

O PRANTO

 

Deito no cinzeiro da vida todas as angústias e todas as mágoas que me ferem.

Aquilo que choro são brasas que um pastor usou para aquecimento das nuvens.

 

Há fogos esverdeados ateados em meu redor,

casual razão vencida sob escombros da alma.

 

22

Para onde foste, Mãe, para que paragens,

onde o vento é azul e o tempo não existe?

Lá onde estiveres saberás que sempre tens

o meu amor na terra, e a alma sempre triste.

 

E no róseo firmamento eu sei que tu me viste,

desfiando orações em roda das paisagens...

Prece eterna a minha, que lá onde subiste

de mim somente guardas as imagens.

 

Como quero ver-te, Mãe, como quero -

mais que com a força suprema da memória -

e unindo esforços naturais assim o espero.

 

Minha querida Mãe, terei um dia essa glória,

de buscares-me, na hora do desespero,

acabando feliz, junto a ti, a minha história!