Linha da Beira Baixa

 


Viagem de comboio a Alpedrinha, terra onde as casas não têm eco

 

Ao longo dos anos 70 viajei diversas vezes de comboio, na linha da Beira Baixa, entre as estações de Santarém e Alpedrinha. Em alguns dos comboios que se formavam em Lisboa, e percorriam a linha do Norte até Santarém (onde eu embarcava), apenas as carruagens de trás seguiam para a Beira, rumando ao Porto as dianteiras. A divisão era feita na estação do Entroncamento. O comboio chegava e estacionava numa linha de resguardo. Os homens da CP desatrelavam, então, o engate da carruagem de divisão, e lá seguia a metade dianteira para o Porto, puxada pela silenciosa locomotiva elétrica, toda ela a dar-se ares de importância e modernidade. E nós, decapitados, portanto órfãos de tração, ali ficávamos à espera, por vezes larguíssimos minutos, que a nossa locomotiva chegasse. Eu, pequeno, mal chegava à janela, mas lá arranjava maneira de, trepando por uma qualquer mala abandonada à sua sorte, pôr a cabeça de fora para ver a manobra de acoplamento da bisarma cor de laranja ao nosso resto de comboio. De repente lobrigava-se lá ao longe uma locomotiva fumarenta e ruidosa em marcha à ré, numa das linhas laterais, em direção a nós. A agulha fazia-se e ela entroncava na nossa linha de resguardo, muito lentamente, até que se sentia um ligeiro solavanco, sinal de que os para-choques já tinham encostado. Agora a locomotiva era a Diesel, como que a prometer-nos uma passagem para terras de outros tempos. Era ali que começava verdadeiramente a magia daquela viagem rumo à Beira.


O comboio arrancava em velocidade reduzida e voltava a parar, desta vez na gare de embarque do Entroncamento. Novos passageiros entravam numa grande agitação, carregados de malas, cestos e garrafões. Lá se acomodavam nos compartimentos de seis lugares, depois de, com esforço, encaixarem a bagagem nas grelhas dispostas por cima dos assentos. Alguns deles cheiravam a fumo e a laranjas e tinham mãos de camponeses, embora talvez não o fossem. Envergavam, quase todos, trajes mais ou menos domingueiros, as senhoras com rendas e cetins e os homens com fatos de surrobeco e gravatas já desaprumadas. O chefe da estação levantava a bandeirola, que durante anos nunca vi desfraldar, e soprava, no seu apito, a ordem de partida. O motor Diesel bramia um ronco sibilante, indício de posição “a todo o gás”, e um solavanco propagava-se em harmónio pelas carruagens, que, lentamente, aceleravam. As juntas de dilatação da linha cediam com o peso do comboio, e os ruídos da passagem das rodas sobre os desníveis dos carris (TOCTOC….TOCTOC) aumentavam de pulsação à medida que íamos ganhando velocidade. Tinha início o desfile da paisagem pela janela do comboio. Eu esborrachava o nariz contra o vidro sujo e começava por me fascinar com a passagem muito rápida de tudo o que estava próximo da linha, como postes e árvores, em contraste com a passagem muito mais lenta de tudo que estava mais distante, casas, montes, prados, animais, o Tejo.


Pouco tempo depois do Entroncamento avistava-se de muito perto o castelo de Almourol, implantado numa pequena ilha do rio. O apelo que aquela magnificente visão da fortaleza templária fazia a eras remotas e misteriosas reforçava-me a ideia de que aquela era uma viagem mágica a outros tempos, para outras paragens, para outra vida. Por montes e vales, sempre ao lado do curso do Tejo, a viagem desenrolava-se calmamente no meio dos outros passageiros, que desfolhavam conversas alegres, talvez por estarem prestes a matar saudades da sua terra.

 

Havia um momento em que, subitamente, a velocidade abrandava para quase nada e eu pressentia a passagem por uma daquelas pontes mirabolantes, sobre um vale profundíssimo, com um pequeno curso de água lá muito no fundo. Num impulso, saltava por cima das pernas dos passageiros do compartimento para ir à janela do estreitíssimo corredor lateral da carruagem. Punha quase meio corpo de fora e ouvia o ranger de traves e rebites à passagem lenta do comboio. A ponte, feita de um entrelaçado de traves metálicas e disposta em arco sobre as margens do vale, parecia ameaçar ruir, tais eram os gemidos que emitia, mesmo à baixa velocidade imposta pelo maquinista. Ao olhar para baixo, a vertigem era inevitável. Lá muito no fundo, um curso de água estreito sulcava o vértice do vale e rebrilhava com o sol.

 

Passada a ponte, mantinha-me à janela com a cabeça de fora. Em algumas curvas de grande raio conseguia ver a longitude completa do comboio, desde a locomotiva cor de laranja até à última carruagem. Em tempos pré-festivos o comboio era tão longo que parecia estar no limite da capacidade da locomotiva, e eu temia a todo o momento que ela, exausta, desistisse da viagem. Quando as curvas de largo raio eram feitas no socalco de um monte e em clara subida, eu observava com atenção o que já me era familiar. O comboio perdia velocidade (e eu temia o pior), mas o maquinista dava gás ao motor para compensar a inclinação. Em simultâneo com o ruido da aceleração via-se uma nuvem de fumo preto a sair da chaminé da locomotiva. No entanto o comboio continuava a perder velocidade por breves instantes e só depois reanimava a marcha, para meu alívio. Havia ali um desfasamento que eu não sabia explicar. Algo parecido com uma diferença de velocidades de propagação, como aquele que o meu pai nos tinha explicado (a mim e à minha irmã) sobre as trovoadas. Como quaisquer crianças, tínhamos muito medo de trovoadas. Então o nosso pai explicou-nos um dia que, para distâncias ao alcance da nossa vista, a velocidade da luz é praticamente instantânea, ao contrário do som, que demora um segundo para percorrer trezentos e quarenta metros. Uma vez que trovão e relâmpago ocorrem em simultâneo, esta diferença de velocidades de propagação entre luz e som permite-nos facilmente ter uma ideia da distância a que uma trovoada está de nós, e, portanto, medir a perigosidade que representa para o ponto onde nos encontramos. Basta medir aproximadamente o lapso de tempo que medeia a visualização do relâmpago e a audição do trovão. Cerca de 3 segundos representam mais de um quilómetro de distância, logo, nenhum perigo. Um segundo, ou um pouco menos, representa cerca de trezentos metros, ou seja, algum perigo. Trovão em simultâneo com o raio, a trovoada está por cima das nossas cabeças! Nunca perguntei ao meu pai se saberia a razão daquele desfasamento entre a aceleração do motor e a aceleração do comboio. Talvez ele me tivesse sabido explicar. Creio que nunca lho perguntei porque queria manter o mistério. Assim a viagem dava-me mais prazer. Também quando me debruçava na janela gostava de ir até ao limite da entrada nos túneis. A sensação de retirar para o interior da carruagem no último momento, antes da passagem para o breu, era emocionante e provocava-me sempre um calafrio. O escuro total do túnel era misterioso e assustador.


À passagem pela barragem do Fratel sabíamos que estávamos quase a chegar à estação de Vila Velha de Rodão, importante marco da viagem. Em Rodão o comboio imobilizava-se mais tempo do que nas outras estações. De tal modo que dava tempo aos viajantes de saírem para se abastecerem de comida e bebida no bar do edifício. O movimento na gare era muito e havia sempre senhoras apregoando a venda de água fresca em bilhas de Nisa, que alguns passageiros acabavam por comprar pela janela do comboio. Era também em Rodão que o curso do Tejo se divorciava da linha da Beira Baixa. O Tejo continuava para nordeste, rumando para lá de terras de D. Quixote, e nós divergíamos para norte, qual flecha apontada ao coração das Beiras.


Retomada a marcha, o apetite e a sede dos viajantes despontava. As senhoras desembrulhavam, de panos de cozinha, nacos de queijo, presunto e fatias de pão, e os homens, numa manobra de perícia quase circense, levantavam o garrafão pela asa, com uma das mãos, assentavam o bojo entre o braço e o antebraço dobrados em “V”, encostavam o gargalo a um pequeno copo de vidro, que empunhavam na outra mão, e enchiam-no de vinho sem derramar pinga, apesar dos solavancos e abanões da carruagem. No final havia quase sempre laranjas descascadas com os polegares.
Entretanto o comboio já suingava o seu TOCTOC/TOCTOC na planície de Castelo Branco por entre odores de pinho e de flor de esteva.  Para nós, passageiros com destino a Alpedrinha, aquelas longas retas eram o prenúncio das faldas verdejantes e graníticas da Gardunha. Nas diversas paragens, em pequenas estações e apeadeiros, íamos vendo abraços muito cerrados entre homens de chapéu, beijos repenicados entre senhoras lacrimejantes e crianças embasbacadas a olhar para a cena.


A seguir a Castelo Branco eu cantarolava em surdina uma cantilena com o nome das estações que faltavam para o destino: Alcains, Lardosa, Soalheira, Castelo Novo. Em Castelo Novo já sentíamos o aroma da Serra, e começávamos a preparar-nos para o apeio. Naquele troço havia um pequeno túnel antes da chegada, mas naquele momento da viagem já não podíamos fazer a brincadeira de por a cabeça de fora até ao limite da entrada na escuridão porque a azáfama era de monta. Recolher a bagagem do compartimento e fazê-la chegar à porta da carruagem era tarefa de elevada complexidade, tal era a quantidade de passageiros e de bagagens que atulhavam corredores, compartimentos e zonas de acesso às portas. Subitamente o túnel fazia-nos imergir na escuridão por um instante, logo depois se fazia luz, e Alpedrinha revelava-se! Aquele túnel funcionava como o reóstato de uma sala de cinema: primeiro escurecia-se a realidade, e quando a luz voltava já estávamos dentro do ecrã, num mundo de fantasia.


Alpedrinha era toda ela feita de gente, de verde, de granito e de água fresca. De granito eram feitas as casas, os palacetes, as igrejas, o pelourinho, as fontes, o chafariz, os muros, os tanques, as calçadas e a estrada romana. Talvez por ordem divina, a água que escorria das entranhas da Serra para os fontanários era sempre fresca, tanto de verão como de inverno. De uma dessas fontes, a que chamavam “da fome”, dizia-se que quem dela bebesse uma vez, para sempre voltaria a Alpedrinha. Eu, à cautela, não fosse essa graça expirar, descia sempre à sua bica e, com a mão em concha, bebia meia dúzia de goles. As casas em Alpedrinha tinham janelas de guilhotina, soalhos e escadas de madeira que rangiam à nossa passagem, e grandes portas interiores feitas de madeira maciça, munidas de fechos assimétricos, de tranqueta e gancho de um lado, e alavanca de polegar e pega do outro, de cujos sons de abertura nunca me hei de esquecer. Mas o que as casas de Alpedrinha tinham de mais tranquilizante para mim era o facto de não produzirem eco no seu interior. Os sons propagavam-se infinitamente, como em espaço aberto, sem reflexões, talvez absorvidos pelas madeiras, tabiques e blocos de granito.  A casa mais anecoica de todas as que eu frequentava era, sem dúvida alguma, a casa da prima Angelina. Situada quase na entrada Sul da vila, tinha dois pisos, uma fachada com doze grandes janelas de guilhotina e duas portas, a térrea, de entrada e saída, e uma porta alinhada com a térrea, no piso superior, de acesso a uma varanda de base granítica, protegida por um belo gradeamento em ferro. A sala, no piso de cima, era enorme. Tinha uma luz morna e ténue e decoração aconchegante. Sentávamo-nos à mesa, em frente a um farto lanche, e, quando a prima Angelina falava com voz pausada e doce, a paz reinava e a ausência de eco era absoluta. Em Alpedrinha comiam-se filhoses com queijo fresco, pão de azeite com manteiga da avó, esquecidos, talassas, pica e migas de rato feitas com feijão frade. A marmelada era divinal. As batatas fritas em azeite e o puré feito com passe-vite tinham sabores ímpares. Bebia-se muito chá preto, quente no inverno e gelado no verão. Por vezes abatiam-se fortes trovoadas sobre a Serra. A minha avó rezava a Santa Bárbara e eu contava os segundos entre o clarão do relâmpago e o trovão. Nas noites de verão, findos que estavam certos dias abrasadores, íamos ao chafariz buscar água em bilhas de barro. Lá no alto, na bica dos solteiros, sentia-se sempre uma brisa fresca a descer pela Serra que me provocava um ligeiro arrepio. No inverno, quando entrávamos em casa, corríamos à procura da mesa de camilha, onde uma braseira de borralho nos iria repor a temperatura do corpo e abrigar-nos de todos os males.


Chegado o último dia, era tempo de preparar a bagagem para o regresso a casa. Às malas que tínhamos trazido acrescia por vezes um grande cabaz de vime cheio de produtos da terra. Feijão frade, azeite, presunto, queijos e laranjas atestavam o cabaz, que era selado com uma serapilheira cosida ao seu bordo, com uma agulha de fio grosso. Porque aquele volume era pesado e grande, era “despachado com o bilhete” da viagem de regresso de um dos passageiros. Na estação de Alpedrinha os homens da CP pesavam-no, preenchiam manualmente um impresso em triplicado, colavam uma via no vime, com pinceladas de goma arábica, davam outra via ao passageiro, e o volume seguia para o furgão do comboio, já à responsabilidade da CP (o drop off de outros tempos!). Viajava connosco, linha da beira baixa abaixo, mas noutra carruagem. O cesto era depois entregue na plataforma da estação de destino, a troco do triplicado que o meu pai tinha guardado, bem dobrado, na carteira. Levávamo-lo para casa, descosíamos a serapilheira, e eu ajudava a arrumar os odores e sabores de Alpedrinha que, mais do que nutrir os nossos corpos, haveriam de mitigar as saudades, até à próxima viagem na linha da Beira Baixa.



João P. Amaral


Lisboa, 22 de julho 2021