101

 

Nevoeiro em Rouen.

Joana d'Arc era um espectro que respirava,

encostado a um cipreste.

 

A agência de viagens não tem visita a esse mundo – a alma;

até as raízes da Solidão apodrecem,

e o Tempo deixa de ser um indefinido meio.

 

Ao longe vejo as aves sobrevoarem o Espanto,

cujos tolontros, incómodos,

não cessam de lhe dar perfil e sombra.

 

Traz toda a sabedoria que puderes dos olhos da cidade.

Recolhe nas mãos afiladas o signo do dever.

Não hesites diante do desconhecido, caminha.

 

 

102

 

Cogito sobre factores endógenos, e aqui,

neste vaso de terra,

tenho toda a realidade necessária para

exilar-me dos sonhos.

 

Esqueci a tua onírica presença; ela é,

invariavelmente,

o que me transporta para o universo irreal,

que não desejo.

 

Fechei a boca famélica da gruta e do abismo;

lentidão de gestos.

As palavras são gazelas que pisam a música -

Sono, silêncio.

 

103

 

ODE A TARKOVSKI

 

No Instituto Oriental, em Moscovo,

estudaste a língua árabe.

Estava um espelho oblíquo atrás de ti, enquanto desenhavas aquele alfabeto.

Não cantes o mundo dos mortos, por favor;

os mortos são as sombras dos abetos no crepúsculo do mundo.

 

O silêncio é visível, a névoa é uma música diáfana.

O tempo e a memória – luz atenta.

 

 

105

 

ÉCLOGA

 

Vejo ao longe, no horizonte imarcescível de rosa, terras de Espanha.

Queria reter em mim, e na minha alma, tudo o que abarca o olhar.

Se tudo fosse meu: os montes, as cabras (com suas coroas), as aves,

as raízes do solo, expropriadas aos sonhos de um pastor!

 

Devoro avidamente, e num ápice, cada alvorada;

percorro, agonizante quase, o oceano de minerais que tenho defronte.

Rodeiam-me pintainhos e cães, as nuvens justapõem-se,

sou disperso e florescente como um rato do campo.

 

Deito-me no chão, por entre flores altíssimas.

Beijo a boca das papoilas silvestres e acaricio as asas das falenas.

Sinto toda a minha alma banhada num mar de êxtase

e saudade e vida e tudo o que a imaginação congemina.

 

 

 

 

 

 

 

 

106

 

O macaco solta

gritos de estridência

e de ouro.

 

*

 

No trigo alto e flavo

a neve encontra

seu abrigo.

 

*

 

O tempo é visível

no cume da montanha

e no destino.

 

107

 

Percorramos todos os templos e todos os santuários

do Ouro e do Vento;

silêncio neste quarto de sal e pedras,

que eu não vivo com o mar dentro,

e a sinfonia das cordas invade

o universo dos duendes, que, de orelhas

pontiagudas,

contam moedas do tempo de Trajano.

 

Um símbolo de vida se ergue no coração.

Ornato silencioso no pulsar da alma.

 

 

108

 

Falenas tombam no riacho,

florindo seus mantos iridescentes.

 

 

 

109

 

TEOLOGIA DO MAL

 

Sou o único homem que traz a solidão

às costas, e o Atlas, e os rios do Inferno,

tudo o que a imaginação cria na nossa

cabeça, e que entristece, cruelmente;

sobram-me milhões de átomos de vida,

sem que possa, contudo, olhar o infinito.

 

Criselefantinas sombras que o olhar

da mulher transporta – não há mudez

nesse olhar, nem os cavalos marinhos

zuniram nos sinos do oceano verde.

Creio que tombam sombras sobre

as rosas e o azoto (crise de nervos).

 

Polifonia cristalizada no sonho de

uma criança adocicada e feliz; não

me tragam mais nada de odorífero e

de caloroso; eu sou a purulenta e vil

essência dos ovos da avestruz e a

bífida sonolência de um dragão.

 

Calai-vos, crisântemos da infância!

Os ventos da memória trazem tudo o

que no meu peito se corrompeu pelos

vasos do sangue, e pelas nossas teses

e exegeses únicas, em que o mundo

é cena mortal e cenário de desastre.

 

110

 

DANIEL FARIA E A SUA POESIA

 

Foste o poeta-sacerdote, o místico, a onda larga

As austrálias abriram suas asas à porta da Primavera

e simétrico foste a um deus de seráfica face

Contemplativo

da Ursa e do cometa e dos prantos

A morte te ceifou no princípio de tua vida

e uma fissura negra se abriu na terra pura

 

 

111

 

DE ONDE VEM A POESIA

 

O poeta é

o escriba de Deus

 

 

112

 

Ao longe, perdidas, as ondas do mar desafiam

tua face divina e clara, e até as nuvens

cor de laranja se juntam diante do teu olhar

 

Cavalos árabes que pelas dunas recolhem seus

ondeados sonhos (que nascem do musgo dos dias)

estão ao fundo da praia larga entoando uma canção

 

antiga, que vem dos confins da terra e que tu

não conheces, por ser babilónica e espiralada

 

Mas não desesperes diante do desconhecido

pois ele é necessário como um astro numa gruta

 

 

113

 

Colhi no mar todas as estrelas e anémonas do teu rosto

Colhi no infinito cada faúlha ardente do teu olhar

Colhi na terra as primícias que o vento trouxe no ventre

 

Não tardes em prosseguir nessa estrada

o universo é só um e espera pouco tempo

o barco zarpará no rio rosado em duas clepsidras

as horas escorrem e alastram-se como fumo

 

Quero ver o teu silêncio caminhando em direcção a mim

a linearidade com que teu rosto extrairá da lua

todos os impulsos vitais e os mais convulsos gestos

 

Saudade e tempo neste momento em que te beijo

Tragaremos os punhais da nossa angústia

Seremos um com os lábios das tochas e da noite

Podridão que permanece no cadáver do nosso pão

 

 

 

 

 

114

 

TRACEJADO EM LINHA RECTA

 

Iluminei, com meus fachos vermelhos,

a tua solidão. Que perversa a minha atenção,

que brinca nos caminhos de poeira, fazendo

bolhinhas de sabão, cuja inflada parede,

toda cheia de cores como a cauda de um pavão,

entra em sintonia com o tempo; e a memória,

essa finíssimo fio de linho que trazemos dentro

do coração, que milagre a verte num momento,

num instante perdido do nosso caminho

tortuoso, grave, e funesto algumas vezes?

Oh, que tormento não trazer no bolso

uma fénix que me renove a alegria.

 

 

 

 

 

 

115

 

Creio na bondade de Deus e dos anjos

Não tenho como romper as nuvens até aos patamares de safira do céu

Sou a singularidade que cresce pelos espaços

siderais, com fulgor e rosas no meu rosto

 

 

116

 

ESBOÇOS DE UMA MANHÃ

 

A única maneira de te olhar

é apartando o sol com um escudo bélico, pois que

olhar-te com a mistura daquela estrela

é como que sentir uma ferida ácida

Se tu soubesses como brilha,

como a lâmina de uma espada,

o coração das aves que me atravessam

a alma nua

 

Despi-me da minha túnica,

sou o único homem que segue no caminho

cheio de pedras, para ir ao teu encontro

Furei as mãos da manhã e rompi

os cabelos da neblina

só para beijar o sangue dos teus pés,

e para mirar a sombra que tu bebes

dos despojos dos antílopes

 

Não digas nada quando eu chegar junto de ti

Trepam por meu corpo míriades de ninfas

pequeninas, que me segredam ao ouvido

que a tua boca não contém

o segredo dos oráculos,

esses que vagueiam no ventre da noite,

e que em solipsa onda vagabunda

varrem da terra o pólen das papoilas

 

 

117

 

Vivam sempre

com uma parcela

de sonho

 

 

 

 

 

 

 

118

 

ADÁGIO PARA KARL MARX

 

 

Foste o filho eloquente de um advogado

Não te cabia tanta dialéctica no mosaico da vida

 

É tempo de romper o paradigma, luz arriba e sonho

 

O teu passaporte é um livro de exílios e estrelas mudas

Elevam-se já os brilhos das tochas

As tuas páginas cintilam

 

O sono e a morte são aquilo que recusas

 

 

119

 

Uma aranha deslaçou meus cabelos longos

que um redemoinho, feito pelos deuses, envolve em ondas de terror

Que farei de meus brocados, meus anéis de prata e meus

silêncios cor de cravelina

Subi ao alto de uma torre estéril,

percorri seus corredores de penumbra e pedra,

onde os filósofos urdiam, no colo de Proserpina,

os sonhos do nevoeiro e da aurora

Quando cheguei ao alto, esperava-me uma coruja,

os olhos da noite tornaram-se subitamente ferozes,

evidenciaram-se minhas veias, escorrendo um sangue espesso,

o gelo do tempo cobriu a terra inteira

Tapei os olhos com minhas mãos esguias

Nenhuma sombra me pôde proteger

Ajoelhei para fitar bem no fundo a música

que se esvaía da boca de Dezembro

 

 

 

120

 

CAIM E ABEL

 

Depois que seus pais formosos do verde Éden foram expulsos,

e Eva concebeu e deu à luz dois irmãos,

um deles, Caim, deu ao Senhor frutos da terra,

ao passo que Abel lhe ofereceu primogénitos de seu rebanho

e suas gorduras.

 

Deus, então, satisfeito com os frutos, mas não com os rebanhos,

aceitou uns, negando os outros.

E Caim cometeu um crime – o sangue de Abel jorrou, como se mil romãs se tivessem

                                                                                                                        [ferido.

Foi nesse instante que Deus, pondo em Caim um sinal,

o impediu de ver o perfil da morte.

 

 

121

 

FRAGMENTOS

 

Percorri as manhãs de neblina, errando

nos veios de outrora, em busca de alguma coisa

que nenhum ser encontra, e que está, talvez,

no centro da terra. O brilho das asas de um

louva-a-deus, a página de um livro em hebraico,

talvez o coração de uma joaninha, rodeado do

orvalho da noite. Percorri, durante dias, os

desertos e os campos árticos. Falei com os seres

mais estranhos que podemos encontrar. Mas

não achei o que buscava. Só desolação

de sermos a máscara da nossa essência.

 

 

122

 

TRATADO DE ARQUEOLOGIA

 

Escava mais fundo na terra, olha que os minerais falam

O sol vai pôr-se não tarda, e o firmamento tingir-se-á de púrpura,

o ambiente germina a nossa esperança numa taça de cristal

 

Dobra cada folha de ouro nos desvãos da cidadela

O tempo e a pureza encontram-se no mais fundo do que pretendemos

É preciso colher todas as sementes para que não nasça

a chama preciosa de um tratado

 

Busca, nesses ossos evanescentes, toda a verdade, não desanimes

Cada um de nós tem a verdade dentro de si, porém,

ela só se revela aos que a temem

 

123

 

Olivais onde andei

perdido, entre sonhos

Onde a lua me beijou

e inerme segui em frente

 

Bocas da noite abertas

sorvendo meu pensamento

que se evola como o vento

indo esbarrar nos anjos

 

Cessa o silente canto

pelos deuses entoado

E olho para o passado

como para um horizonte

 

 

124

 

ÉBANO

 

Carne dei, e retalhos de alma, à pantera da noite

debaixo de um luar que os seus olhos ofuscavam

 

 

125

 

ARCO

 

A vontade é chama e semente,

verdade, a única verdade, e somente força

Plantar a vontade como se planta um milheiral

Profusa sintonia com a Vida

 

 

 

 

126

 

Colhi os trevos manchados de sangue

que no prado, «apetrechados de asas», vão

seduzindo a nossa treva, onde demónios hediondos

habitam

Soube que eras tu quem estava do outro lado do espelho

e quem atravessou a fronteira do drama e do desastre,

tacteando levemente os bordos dos planetas

aureolados de gelo finito

Canta, amor, canta brandamente

O silêncio é tão antigo como a música

O meu olhar suplanta a tua frota de andamentos

 

 

127

 

Quanto delego à poesia    os meus delírios, e

quanto nela delego minhas vozes

interiores

O seu sopro é o vendaval horrendo

da minha alma, e sua

violência é a brutalidade do meu pensamento

 

Canta, poema, tudo quanto me percorre cá dentro,

vocifera o que se aloja no meu peito

Traz de uma terra verde toda a originalidade

e toda a simetria que te cabem nas sílabas

 

Eu sou meramente a tua matéria e tua fonte

 

 

128

 

 NEGRITUDE

 

Vede a rude paisagem do pensamento,

a subitânea estrela que se queima no olhar;

vede Marte ardendo, e a brancura do vento,

o signo do Mal que tudo dará para te guiar.

 

 

129

 

Escrito dentro do Panteão de Roma

 

Quando da luz emerge a nossa vida,

cuja compleição os anjos resguardam,

palavras a um deus de muitas almas eu dirijo

e sou a totalidade do meu ser

 

 

 

130

 

ROMA

 

Súbita, ouço a voz do imperador

Há uma dança que os deuses dançam em redor da sua túnica

de púrpura e ouro

E o seu cabelo anelado desenha o gesto da noite

de pedra,

enquanto o Lácio é devorado pelas estrelas

 

 

 

131

 

AMENÓFIS I

 

Na luz opaca

do Nilo, os deuses

molharam de cidra

teu rosto

 

As portas do templo,

cujo brilho era

de nácar, abriram-se

para te ver chegar

 

Teus pés augustos

rojaram pelas areias

do deserto, enquanto

tu sofrias

 

A tua máscara, hoje,

não te representa inteiro;

só nos domínios de Rá

os chacais te reconhecem

 

132

 

Tracei, impudicamente, nos teus olhos de ágata, um círculo mais perfeito

que a tua pupila. E soube, no momento em que o delineei, que os tempos

de outrora regressariam por um instante. Um instante perfeito e nítido, como

uma fotografia muito recente, saída há pouco da polaroide; um instante

tão preciso e singular, que seriam precisos milhões de anos para detectar

as suas imperfeições. Ouve, eu não tenho, nas pregas do meu manto,

os gelos guardados pelas feras. Só elas sabem onde se recolhe essa

preciosidade clássica. E não trago, junto do meu ouvido, a música

quebrada pela tristeza. Sei apenas que, junto de ti, se assoma um vulto,

e que ele te leva para um desfiladeiro terrível, onde o teu peito encontra

o símbolo que buscava incessantemente, e que, perdido, se esvanece

por entre as asas dos tordos, entontecidos de lua e de ar rarefeito.

 

Nos charcos da memória anseias por ver Narciso contemplando sua

face. Há desejos mais difíceis de conseguir, se estivermos bêbados do

universo; por isso, não hesites em dispersar todas as células dos diaman-

tes, e difundir, como punhados de cinza ao vento esparsos, todas as

ideias que te vierem à mente. Não há limites para a nossa imaginação,

não há limites para sonhar os mitos mais extraordinários, em que o

jaspe e o coral estão em sintonia perfeita; e nem é preciso atravessar

a fronteira do Paraíso, porquanto (sabe-lo bem) os mistérios do Túmulo

não são fantasias de cores místicas que se não alcancem com o dedo

indicador. Toca-lhes, e não temas a realidade guarnecida de orvalho

que elas transportam no seio; há milhares de pérolas que as coroam e

as suas mãos são da finíssima matéria da melancolia e da beleza.

 

Sopro todos os ventos que a noite sopra por entre os rios, e não sei

como hei-de perseguir as cariátides branquíssimas e belas, que sibilam

uma delicada melopeia aos teus ouvidos. Não ser eu a máscara de tudo

diante de tudo, eis o que me angustia e dilacera. Queria estender-te a

lâmpada de Aladino, e invocar um deus esfíngico antigo, reinante das

sombras e segredos, num país severo, cheio de noites luminosas. Porém,

no jardim da magia tiritam de frio os sinos de cristal; já nada podemos

fazer, Amor, para os agasalhar com o fogo intenso que nos vive na alma,

mas que as ninfas não conseguem extrair. Seriam precisos muitos trabalhos

duros, muitas caminhadas e muitas penas, para que o nosso dia não

terminasse. Trazes dentro do peito um ocaso de âmbar, e eu olho-te com

fulgor, achando que dentro de ti há gritos, mas existe santidade.

 

 

133

 

DIOSPIRO

 

Refulge um segredo no interior

daquele coração

 

 

134

 

Desenhei, no meio-dia, uma inscrição rúnica

e floriu um sabre nos meus olhos

 

Estava um colar de sóis místicos no teu pescoço

enquanto oravas a um deus desconhecido

 

 

135

 

Quero ver, ao fundo da sala escura, a luz do insecto,

aquele que brilha, e emite um som musical,

o brilho das suas asas e as patas de dragão

 

Abro as janelas da noite, e os braços, para a face das estrelas -

eu sou a intempérie a amplos espaços,

que dança e rodopia por entre os teus passos

 

 

136

 

Cravei, no corpo pálido da neve, uma lança de vidro -

quisera que o invisível fosse assim visível.

 

 

137

 

Bebi a luz que vomitavam as flores violetas,

e não pude olhar o forte muro onde nascia o húmus,

porquanto, na Idade Antiga, os restos eram restos,

e nada nos era permitido.

 

Redigi, nas línguas mais estranhas,

os poemas biográficos dos mortos, esses

que habitam na caverna ao fundo do planeta

e, com seus dedos de sombra, acariciam o vazio.

 

Fiz um corte na cúpula da numerologia;

e corri, silenciosamente, as cortinas

ondulantes, cujas franjas, manchadas de ouro,

velavam um país onde renasceríamos.

 

 

138

 

ÁGUA-FORTE COM AMÊNDOA

 

Construí, sobre as nuvens, um castelo de vinho,

onde porei a habitar um grupo de cabritos agrestes,

que cantam em grego, e cujas mandíbulas terríveis

encerram os factos da História e das lendas.

 

Outrora fui um pagão que não sofreu um golpe;

e sentei-me à beira do rio para ver as árvores

beberem o brilho do astro reflectido na água;

mas não pude comungar desse banquete.

 

Porém, no jardim, que arquitectei à sombra do

cavalo, erigi um obelisco antigo, com missivas

igualmente antigas e profícuas, pois que, de

facto, mil pitonisas se sentam em meu redor.

 

 

139

 

A morte não é o fim de tudo, mas um novo começo.

O começo, talvez, de uma eternidade, não nublada, como se julga,

mas nimbada de luz violenta, sons sobrenaturais, música sideral.

Temer a morte é como temer o divino; é como temer um desconhecido que se deixa

entrever, maravilhosamente, por entre os panos negros do funeral.

Não se deixem enganar pela mortalha e pelo coração parado.

A matéria que é, senão matéria? Que relevância tem ela, no peso do mundo?

Acaso tem Lavoisier mais importância que Jesus? Nenhuma! Eu o digo, nenhuma -

a Bíblia é perene, é mística, é telúrica, é tudo de concreto e de subjectivo ainda;

já a ciência está circunscrita ao que é. Nunca pode ser mais alguma coisa,

porque resume-se àquilo que lhe foi destinado, e nada mais. Um átomo

é um átomo; uma flor, uma flor. Já Deus... Deus multiplica-se em biliões

de entidades, seres e coisas, ideias, inexoravelmente, deixando sempre uma pergunta

nova após a resposta. E isso é que importa: haver sempre mais uma pergunta a

precisar de resposta, para que o fio do infinito não acabe.

Afinal, porque me hei-de preocupar com a finitude de tudo, se

tenho a garantia de que o infinito me espera? Não, não me hei-de

preocupar com tal coisa. A morte é a anunciação de Tudo para Tudo, e fico

satisfeito com a ideia de que o que me espera é o Tudo.

Que tenho eu agora? O Nada. Tenho a materialidade concisa e recta,

mas não tenho o panorama geral da subjectividade.

Ah, só espero não esbarrar no muro de linho!

 

 

 

 

 

 

 

 

III - SAGITÁRIO

 

 

140

 

Julguei que um rio de perfume me invadira o espírito -

um lírio pousara no meu coração

 

 

141

 

I know, dear, I know

how funny days we spent next the lilacs

Bring to me, dear, the sun on a plate -

fire is the home of the myth

 

142

 

Que dias existem por detrás da felicidade?

Construi uma coroa de margaridas

para te oferecer, mas tu recusaste

 

com um gesto brusco, e, no teu anelar,

brilhou, violentamente, uma safira.

Quis que me visses atravessar desertos

 

para te encontrar, orando tranquilamente;

porém, ao chegar ao pé de ti, eu tive a certeza

de que o teu mundo não reflectia a minha imagem.

 

 

143

 

Subi a escadaria do Destino.

Galguei os degraus, cansadamente.

Em cada um, um demónio me fitava.

Eu trazia nas mãos uma branca concha.

 

Cheguei ao topo, uma nuvem me

ensombrava. Rodopiei no palco da certeza.

Tempo de negação e pena doce.

 

 

144

 

Senhor, acendei os olhos do profeta

que, no deserto, busca o nosso sonho mais antigo

A ruína da alma é uma ferida funda

Trazei-nos lágrimas do Vosso coração

 

 

 

145

 

Derramai os minúsculos grãos do amor;

caminhai sobre as águas da ria, como um ser divino;

orai no cume do monte, com o céu em fogo, pedindo perdão;

trazei, penosamente, a singularidade do sentimento,

cantando a litania do sufoco do sangue

 

 

146

 

Eres una donciela de ambar y maíz

Mariposa en el aire    Infinita soledad