O Velho do Mar
Parte II
Esmeralda sempre venerou a imagem do seu pai e nunca se cansou de transmitir a sua admiração pelo Velho do Mar aos seus descendentes. Quando a sua neta, Maria da Paz, fez 18 anos, no ano de 1992, aproveitando a ocasião da sua entrada para a Universidade, ofereceu-lhe os escritos do bisavô com grande solenidade.
Júlia completou o curso de medicina e Romão, com a ajuda do sogro, iniciou carreira na companhia dos telefones. Vieram a casar-se em 1953. Tiveram o seu primeiro e único filho em 1963, a quem chamaram Luís. Luís da Piedade Laranjeiro cedo revelou ser um puro génio musical. Vivia com os pais nas Avenidas Novas em Lisboa. Aos seis anos de idade, tinha lições de piano e já se comovia quando assistia a concertos na Fundação Gulbenkian. Aos dezoito anos, foi estudar música para Paris e nunca mais voltou a morar em Portugal. Os pais sempre lhe proporcionaram uma vida cheia de confortos e mimos. Em pequeno, contavam-lhe as dificuldades que tinham tido em namorar, por causa das rivalidades entre a Incrível e a Academia, mas nunca lhe contaram a tentativa de suicídio, que poderia ter redundado em tragédia e na sua inexistência. Mais tarde, quando já era muito famoso em todo o mundo, Luís, nas frequentes entrevistas que dava aos principais órgãos de comunicação social, não revelava grandes detalhes das suas raízes, para além da origem portuguesa. Utilizava sempre o nome artístico Louis Alma, fosse na vida pessoal ou na vida artística.
Maria da Paz viveu uma infância modesta na casa da avó. A mãe, Vitória, morreu cedo e o pai nunca apareceu. Foi a sua avó Esmeralda, já viúva, que tomou a cargo a sua educação desde os três anos de idade. Esmeralda foi uma mulher de muito trabalho, sempre pronta a sacrificar-se, primeiro pela filha e depois pela neta. De trato rígido mas afetuoso, tinha uma atitude de educadora adequada aos tempos que corriam. Sabia que Maria deveria continuar a estudar até chegar o mais longe possível, embora as dificuldades financeiras não ajudassem. Nas noites mais frias e de temporal, enquanto a chuva fustigava as velhas vidraças, contava a Maria histórias mirabolantes de aventuras no mar, que tinha ouvido do seu pai. Dizia-lhe que, um dia, quando ela fosse para a faculdade, haveria de lê-las no diário do seu bisavô. Usava aquela promessa de oferta dos escritos de Esmeraldo Feijó como um incentivo para que a menina se esforçasse na escola, porque percebia o fascínio que o Velho do Mar já exercia sobre ela. Quando Maria recebeu os diários do bisavô, esteve três dias na biblioteca das Galveias a lê-los. Navegou no tempo, sentiu o frio, a chuva na face e ouviu as ondas do mar. Ficou encantada pela figura do Velho do Mar e prometeu a si mesma que, um dia, haveria de conseguir perpetuar a imagem do seu bisavô. Maria da Paz estudou artes e cedo se dedicou a uma vida profissional muito ativa. Concluiu um mestrado em Itália indo, em seguida, trabalhar para Amsterdão. No segundo ano de trabalho na Holanda, a sua avó Esmeralda morreu. Sentiu-se sozinha no mundo. Sem família próxima e com todos os amigos em Lisboa, decidiu regressar a Portugal. Foi morar para Santos e recomeçou a sua vida profissional. Antes dos trinta anos já fazia parte da direção de um importante museu. Envolveu-se na política porque queria lutar pela igualdade no mundo. Nos seus tempos livres, fazia frequentes incursões à margem do Tejo entre Cacilhas e a Cova do Vapor, para investigar vestígios da vida de Esmeraldo Feijó, que a levaram a envolver-se com o Concelho de Almada. Veio a ser eleita para a Câmara Municipal, tendo sido nomeada Vereadora da Cultura. Quando, numa Assembleia, foi aprovada a implantação, numa rotunda do Feijó, de um monumento de homenagem aos pescadores do Concelho, Maria da Paz teve a tentação de revelar a identidade do seu bisavô e influenciar a execução da estátua em sua homenagem. Depressa mudou de ideias, achando a ideia mesquinha e ridícula. Limitou-se a fazer algo que, no seu íntimo, considerou uma pequena corrupção. Influenciou, tanto quanto pode, sem levantar desconfianças, a escolha de uma proposta de monumento que lhe fizesse lembrar a vida heroica de Esmeraldo. A escolha incidiu sobre um grande prato/barco com um enorme peixe descarnado e um pescador a lutar contra as ondas, apenas munido dos seus remos. Mais tarde, já com o monumento erigido, Maria passava pela rotunda, lembrava-se do bisavô e comovia-se.
Noutro grande projeto municipal, em 2006, Maria foi incumbida de organizar um evento de inauguração de uma sala de espetáculos polivalente, no centro da cidade. Grande apreciadora de piano, teve, então, a ousadia de querer convidar Louis Alma a atuar na qualidade de grande estrela de cartaz. Fez um contacto oficial com o Agente do pianista que, quando recebeu a comunicação, imediatamente falou com o artista. Louis Alma, assim que soube que se tratava de um evento em Almada, recusou liminarmente o convite. Lucca Cappelletti, experiente agente de artistas de alta roda, tinha tanto de bonacheirão quanto de eficaz no seu trabalho. Disse-lhe que lhe parecia interessante o convite e que achava que ele devia, pelo menos, considerar aceitar. A resposta de Louis manteve-se friamente negativa e Lucca declinou formalmente o convite, alegando incompatibilidades de agenda. Maria não se deu por vencida. Com muita insistência, acabou por conseguir falar ao telefone com o Senhor Cappelletti. Maria foi tão convincente e decidida que Lucca prometeu-lhe que iria tentar pô-la a falar diretamente com Louis ao telefone.
Após muita insistência, Louis acabou por aceitar falar com Maria. Quando recebeu a chamada e ouviu o seu tom de voz firme, feminino, mas ligeiramente rouco, rendeu-se, antes mesmo da argumentação principal, e acedeu participar na cerimónia. Não gostou dessa sua fraqueza, mas justificou-se a si próprio com a pausa de seis meses na carreira, que tinha planeado para começar nessa semana e para a qual nada tinha ainda previsto. Marcou viagem para Lisboa, sem previsão de regresso.
Aterrou em Lisboa ao final da tarde de um domingo chuvoso de outono. A humidade e o ar tépido lembravam-lhe outras paragens, mas Lisboa estava agora ali a seus pés e, sem saber porquê, o nevoeiro, as luzes e o pequeno caos urbano, encheram-no de melancolia. Havia seis anos que não vinha a Portugal. Da última vez, tinha vindo para o funeral dos pais, Júlia e Romão. Tinham sido encontrados mortos, no sofá da sala, encostados uma ao outro, com a televisão ligada. Revelariam as autópsias que tinham ambos morrido de insuficiência cardíaca, praticamente em simultâneo. Nessa altura, permaneceu por uns meses e reformulou o grande apartamento das Avenidas Novas. Agora, no táxi moderno, de motor híbrido, que serpenteava silenciosamente pelas ruas mal iluminadas, sentiu-se uma criança mimada e desprotegida, com medo da escuridão da cidade. Quando a viagem acabou e se dirigiu à grande porta de ferro e vidro do condomínio, lembrou-se que era a estrela Louis Alma e retomou a compostura. Imaginou por uns momentos como seria a sala de espetáculos onde iria tocar. Não conseguiu conter um sorriso condescendente. Digitou o código da fechadura, olhou para os transeuntes apressados e sentiu-se grande, luminoso.
No dia em que estava agendado o seu primeiro encontro com Louis, previsto para as onze horas no seu pequeno gabinete dos Paços do Concelho, Maria acordou mais cedo do que o costume. Um leve frio no estômago afligiu-a e fê-la acelerar as atividades rotineiras da manhã. Exagerou no blush, com medo de parecer demasiado pálida, e desenhou um leve traço de highline em torno dos olhos. Tirou o blush. Avivou os lábios com gloss incolor e deu por terminada a maquilhagem. Vivia num pequeno apartamento em Santos-o-Velho, não muito longe da casa onde tinha sido criada pela avó. Apanhou o elétrico até ao Cais do Sodré e embarcou no Cacilheiro das nove e cinco. Sentia-se ansiosa e insegura. Embora já tivesse feito aquela viagem centenas de vezes, a ondulação e a chuva, que fustigava os vidros sujos do barco, assustavam-na. Quando desembarcou na estação fluvial, em Cacilhas, a chuva abrandou. Eram nove e dezassete, ainda tinha tempo de ir a pé até à Câmara, pensou. Percorreu todo o cais do Ginjal em passo lento. Lisboa, em fundo, mal se via, como se um véu de névoa tapasse pudicamente a nudez da cidade. Andando calmamente e olhando em direção ao mar, enquanto a brisa húmida lhe acariciava a cara, pensou no seu bisavô e nas mirabolantes histórias ali passadas, cheias de mistério e audácia. A pouco menos de trezentos metros do destino, uma chuva torrencial caiu, deixando-a completamente descomposta e encharcada. Chegada ao edifício da Câmara, correu aos lavabos para se recompor.
Quando lhe bateram à porta do gabinete, para anunciar a chegada do convidado, Maria sentiu, de novo, um frio no estômago que lhe arrepiou todo o corpo. Conhecia Louis de várias fotografias e vídeos que lhe tinham causado uma forte impressão. Talvez por isso estivesse extremamente ansiosa com aquele encontro pessoal. Afinal não era todos os dias que se conhecia pessoalmente um dos maiores pianistas do mundo. Mal teve tempo de ajeitar o cabelo molhado antes de Louis irromper pelo gabinete em passo firme, com um franco sorriso nos lábios. Maria levantou-se e estendeu-lhe a mão. Louis segurou-lhe suavemente os dedos e esboçou um gesto incompleto de beija-mão, baixando ligeiramente a cabeça. Fosse pelo sua extrema insegurança e timidez, ou pela ansiedade que o momento lhe provocava, Maria não se apercebeu da impressão avassaladora que causou em Louis. Ela, por sua vez, ficou encantada pela presença elegante e serena dele, que, num movimento ágil, se sentou, respondendo ao seu convite, mantendo uma postura talvez demasiado hirta para uma certa informalidade de que o encontro se revestia.
Às oito horas da manhã daquele dia, como era seu costume, Louis tinha-se levantado com boa disposição. Deslocado da sua rotina diária, confortavelmente instalado no apartamento onde viveu a sua juventude em Lisboa, sentia-se alegre e pensava apenas em despachar a sua atuação para depois desfrutar de uma boa temporada de descanso em Lisboa. Em nenhum momento tentou imaginar como seria Maria da Paz. Vestiu-se de forma desportiva e levou uma gabardine camel para se defender da chuva, que já batia fortemente nas janelas do salão. Já no táxi, enquanto apreciava a paisagem vista do alto dos setenta metros da grande ponte suspensa, recebeu uma chamada de Cappeletti. O velho Manager queria apenas pô-lo bem-disposto. Disse-lhe que tivesse atenção a Maria da Paz. Tinha visto umas fotos dela no sítio da Câmara Municipal. Era uma mulher lindíssima. Rematou, dizendo-lhe que fizesse um esforço para desencalhar, que já estava na idade de ter uma família e despediu-se com uma sonora gargalhada.
Chegou vinte minutos adiantado. Vagueou pelas ruas circundantes e entrou no edifício cinco minutos antes das onze.
Quando, às onze em ponto, cumprimentou Maria, um turbilhão de emoções varreu-lhe a mente e quase o paralisou. De olhos castanhos muito rasgados, nariz ligeiramente adunco, lábios perfeitos, com um cabelo liso e sedoso, castanho claro, abaixo dos ombros, Maria irradiava uma beleza transcendente e uma serenidade que não correspondia ao seu íntimo.
Aos olhos de Maria, no decurso da conversa, Louis quase sempre se comportou como a superestrela mundial, formal, séria e eficaz. Por escassas três vezes, contudo, Maria conseguiu arrancar-lhe um sorriso natural e um brilho no olhar. Louis bebeu cada palavra de Maria e apreciou cada segundo da conversa. Era uma mulher naturalmente sofisticada e brilhante.
No final, Maria acompanhou-o à rua. Um enorme arco-íris despontava por detrás dos prédios defronte à Câmara. Maria exclamou:
-Que belo arco-íris! Talvez seja um prenúncio de sorte para a sua atuação.
Louis respondeu:
-Ou talvez seja um prenúncio de sorte para as nossas vidas!
Riram-se ambos como dois adolescentes. Louis exclamou, sorridente, acenando com a mão esquerda de forma cómica:
-Au revoir Marie de La Paix !
Maria da Paz regressou ao seu gabinete, impressionada. Louis regressou a Lisboa, apaixonado.
(continua na Parte III)